The Handmaid’s Tale



“Nolite te bastardes carborundorum”

Em 1985, foi publicada a obra “The Handmaid’s Tale” da canadense Margaret Atwood (lançado no Brasil pela editora Rocco como “O Conto da Aia”). O livro foi muito bem recebido pelos críticos, tendo ganhado vários prêmios literários, e pelo público, nunca tendo saído de circulação. Porém, houve alguns detratores que afirmavam que a distopia “era muito irrealista, afinal, a humanidade havia alcançado um estado semipleno de liberdade individual. Era impossível voltar atrás”. Em entrevistas para a promoção da mais recente adaptação do livro, Atwood declarou que hoje isso é algo que ela não escuta mais. A realidade retratada na obra não parece mais tão impossível de acontecer e isso é absolutamente assustador. 

A série, que teve 10 episódios em sua primeira temporada e foi transmitida nos Estados Unidos pelo serviço de streaming Hulu (ainda sem disponibilidade no Brasil), se passa em um futuro onde um grupo extremista de direita se apossou do poder nos Estados Unidos e instaurou um regime totalitário e teocrático, onde as mulheres basicamente não têm mais direito nenhum. Elas não podem votar, expressar opinião política, andar sozinhas na rua e nem mesmo ler ou escrever. Homossexuais são assassinados como "traidores do gênero" e o sistema judiciário é baseado em interpretação literal bíblica. Nesse futuro, a poluição e o excesso de químicos fez com que a infertilidade se tornasse uma epidemia e por isso as poucas mulheres férteis são coletadas, feitas concubinas e distribuídas nas casas dos lideres do governo para gerarem filhos para eles. A cada mês, elas são estupradas pelo senhor da casa (embora, obviamente os cidadãos crentes no regime de Gilead não vejam tal prática como estupro), enquanto as esposas assistem passivas ao ato. As handmaids (aias, na versão brasileira do livro) até mesmo perdem o nome, sendo conhecidas pelo nome do senhor a quem pertencem. A protagonista da série é uma dessas handmaids, June (que mais tarde recebe o nome de Offred > of Fred > do Fred), que ao tentar fugir no começo da ocupação teve seu marido baleado e a filha sequestrada pelo governo. Ela segue a rotina de uma handmaid, obedecendo à família a quem foi designada e às leis absurdas do governo de Gileard. Porém, por trás de toda submissão, ela nutre um sentimento revolucionário de revolta e a esperança de um dia recuperar a filha e sua dignidade.



Não vou mentir, The Handmaid’s Tale não é uma série leve e "prazerosa" de ser assistida. Coração não vai ficar quentinho aqui não. Acompanhar a série é uma experiência desconfortável e visceral, mas é maravilhosa. E extremamente importante. Sério mesmo, gente. Há muito tempo não via algo que me impactava tanto. A cada episódio, eu sentia cada pelo do meu corpo arrepiar. Claro, é uma distopia. Gileard não existe. Mas muito do que é retratado aconteceu e acontece mundo afora. Nas próprias palavras da Margaret: “eu não coloquei nada no livro que não tivesse acontecido alguma vez, em algum lugar. Ou que não estava acontecendo antes; e agora”. A relevância da história é completamente apavorante. E o pior é que muitos de nós fechamos os olhos enquanto o estupro se torna cada dia mais banalizado, homossexuais são aprisionados em campos de concentração na Chechnya, garotas de oito/dez/doze anos são forçadas a casamentos, transexuais são espancadas e mortas(os) simplesmente por assumirem suas verdadeiras identidades, mulheres em algumas partes do mundo têm suas partes intimas mutiladas e a liberdade individual é cada dia mais e mais violada. A série (e o livro) serve com um grande despertar para que entendamos que é preciso estar antenado. É interessante como, na trama, o grupo extremista foi crescendo aos pouquinhos, conseguindo conquistar mentes vulneráveis e se aproveitando do ceticismo de parte da população que achava que seus direitos estavam garantidos para sempre. Tem uma cena (e peço perdão pelo pequeno spoiler) que para mim foi muito poderosa na qual, em flashback, mostra as mulheres em uma passeata protestando contra a lei que acabara de entrar em vigor que as proibia de trabalhar. Policiais invadiram as ruas, mas elas continuaram avançando. Afinal, elas pensavam, eles não teriam coragem de partir para violência, não é mesmo? As balas deviam ser de borracha. As bombas de efeito moral. Protestar é um direito. Mas o mundo já tinha mudado, mesmo sem que elas estivessem cientes disso. Os policiais começam uma verdadeira chacina. Foi aí que todos viram que os direitos humanos e a Constituição do país que antes era visto (pelos americanos neh) como “the greatest country in the world” já era. Não tinha volta. É por isso que é preciso - hoje - estarmos atentos para o que ocorre nas paredes do congresso nacional. E ao que acontece no mundo. É preciso proteger não só seus direitos, mas também os daqueles que são diferentes de você.

Mas a série não vale a pena só por seu contexto social. É também um deleite narrativo e áudio-visual. A trilha sonora traz músicas contemporâneas que embalam momentos icônicos e deixam tudo ainda mais emocionante. A ambientação, o figurino e a fotografia são muito competentes em criar um clima frio, opressor e assim transportar o telespectador para Gilead. O texto também é excelente. Inclusive os roteiristas foram muito felizes em suas escolhas narrativas. Um exemplo é a escalação de atores de diversidade étnica inclusive para papéis chaves da trama. No livro, entre outros absurdos, o governo de Gilead exilou toda população que não fosse branca. Porém, os produtores perceberam que manter tal configuração na série, faria dela uma produção racista. Por falar nos atores, que elencão da p*! A começar pela protagonista da série, Elisabeth Moss (Mad Men), que é sem dúvidas uma das atrizes mais talentosas da sua geração e merece um Emmy pra ontem. Mas todo o elenco brilha na tela: Yvonne Strahovski (Chuck), Ann Dowd (The Leftovers), Samira Wiley (Orange Is The New Black), Joseph Phines (Shakespeare Apaixonado), Madeline Brewer (Hemlock Grove), O-T Fagbenle (Looking), Max Minghella (The Mindy Project) e até mesmo Alexis Bledel (Gilmore Girls), que até então eu achava que era uma atriz bastante mediana, mas aqui protagoniza cenas agonizantes e heartbreakings, sobretudo no terceiro episódio, e tem um desempenho memorável. 


O post ficou gigantesco e mesmo assim ainda poderia dar mais mil razões do porquê The Handmaid’s Tale é imperdível, mas vou parar por aqui. Espero que vejam e assim se sintam motivados a lutar para que Gilead nunca se torne real.

TRAILER

Escrito por Vitor Souza

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