quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Midsommar – O Mal não Espera a Noite, de Ari Aster


O Mal não Espera a Noite é um título brasileiro que lembra como chegavam ao país grandes filmes da fase clássica de Hollywood, especialmente os faroestes e as tramas policiais. O faroste The Wild Bunch, de Sam Peckinpah realmente é sobre um “bando (de) selvagen(s)” e I Confess, de Alfred Hitchcock, aproveita um ótimo trocadilho para um padre que é pressionado a confessar um crime que não cometeu. Mas convenhamos que O Ódio Será Tua Herança traduz muito bem a violência e descrença que Peckinpah leva para o gênero que já vinha sendo revisado; e A Tortura do Silêncio traz o peso da escolha do padre e a retidão de sua moral. Às vezes um título não é apenas um resumo da trama do filme, mas uma chave de entendimento do que está dentro da tela.

O mal não espera a noite. É o solstício de verão no hemisfério norte e o sol na Suécia brilha por quase 20 horas por dia. É curioso que este ano outro filme tenha escolhido mostrar o fim do mundo na claridade solar. Em Os Mortos não Morrem, de Jim Jarmush, a Terra parou de rodar em seu eixo e grande parte do filme acontece sob uma luz crepuscular muito bonita, mas a anomalia acaba despertando os mortos e uma horda de zumbis ataca a pacata cidade no interior dos Estados Unidos. Já não há mais necessidade da escuridão que nos engole para mostrar seus horrores. Está tudo por aqui mesmo.

Se escolhermos acreditar num inconsciente coletivo – e sempre escolho, quase que encarando a vida como uma fanfic de nós mesmos porque às vezes é o que parece –, surge uma metáfora fácil, mas convincente. Há 10 anos, acreditava serem preguiçosos os filmes que usavam vilões nazistas porque, bom, o mais vilão que alguém pode ser é usar uma suástica. Mas hoje em dia, não só dividimos o espaço público com nazistas de verdade que fazem o que querem sem sentir vergonha alguma como ainda precisamos aprender todas as novas vertentes e subdivisões dessa palhaçada. Não precisamos entrar nas sarjetas sujas pra arranjar confusão. Tá tudo aí.


O novo filme de Ari Aster usa duas cenas para estabelecer toda a trama: um relacionamento em seu fim e uma viagem para a Suécia, incentivo de toda a ansiedade. Dani (Florence Pugh) consegue notar em cada resposta pelo telefone que Chris (Jack Reynor) já não a ama mais. Ele reclama há um ano com os amigos de como tudo está péssimo, mas sabe que ainda gosta dela e sente que precisa dar o apoio que ela precisa para seguir. Afinal, a irmã de Dani é bipolar, ela mesma lida com suas questões de saúde mental e, sinceramente, às vezes é difícil levar mesmo. Um trauma familiar deixa Dani ainda mais vulnerável, mas Chris já tinha comprado a passagem pra Suécia. Os primeiros 20 minutos de filme te fazem revirar na cadeira porque existe um clima em cada compartimento, há também um desconforto palpável, mas não o exorcismo que exclua aquilo dali. Afinal não tem Satã na sala, como era em Hereditário. O Inferno são os outros.






Dani, Chris e seus amigos antropólogos desembarcam na Suécia para conhecer a vila onde Pelle (Vilhelm Blomgren) nasceu: uma comunidade isolada que mantém seus próprios ritos, sendo o principal uma festa de nove dias a partir do solstício de verão. É um misto de visita amistosa e etnografia, afinal Josh (William Jackson Harper, excepcionável em seu papel de Chidi Anagonye dramático) vai com a intenção de escrever sua tese sobre o povo de Pelle. Assim como os personagens, somos recebidos na vila através de um portal, material e metafórico, onde nada externo consegue interferir. Se Dani tem uma bad trip com os cogumelos que ganharam ao chegar no destino, a câmera de Aster faz o que pode para demarcar que também está adentrando a magia. Começando com esta de cabeça pra baixo pela estrada até a tentativa de deformar os espaços para mimetizar o efeito dos psicoativos (meio Medo e Delírio em Las Vegas). É tanta coisa acontecendo que às vezes Aster pesa a mão. Mas deixa muito clara a tentativa de construir um mundo particular que funcione a seu próprio modo. 

Acompanhamos toda a festa da tribo sueca sem que nada além do estabelecido nas cenas nos EUA seja material narrativo. Com exceção do casal protagonista, com seu drama particular, não sabemos muito sobre os personagens. Pelle acaba performando o papel de guia para seus amigos – e para o espectador – enquanto Josh toma notas para seu estudo e Mark (Will Poulter) age como o garoto mal-educado por onde passa. Os conflitos entre personagens apresentados a partir dali são mais pistas falsas e tentativas de criar um clima que sustente nossa jornada pelos nove dias de festa e mais de duas horas de filme.

Fica evidente, portanto, que o diretor tem um plano visual para pôr em prática. Aster cria um povo e uma mitologia para conseguir mostrar como quiser e achar conveniente. A câmera transita pelo espaço, mostra de longe, mostra por muito tempo, elabora ligações, faz escolhas e muitas vezes tudo parece lindo na tela, mas talvez fosse feio na vida real, ou só muito pouco prático. Ele se põe quase como um etnógrafo: não apenas registra, mas faz acontecer na carne de sua imagem. Dá vida mesmo. E dá vida porque sabe que é uma ficção. O personagem de Josh é um trunfo do filme ao inverter essa relação antropológica. Aqui, o negro é o cientista que chega com o olhar analítico. Cansados de ver “holocaustos canibais” e afins sobre os povos indígenas das Américas ou as caricaturas de povos ingênuos em África, O Mal Não Espera a Noite traz um ritual tão absurdo quanto e branco como nunca. Não só branco, sueco!


Mesmo com essas subversões de significados estabelecido, a película se isenta de dar alguma das partes como certa. Se em Hereditário, Toni Collette tem seus defeitos, ela tem todo o direito de surtar, afinal seu trauma é literalmente um dos maiores que alguém precisa carregar. Mas aqui Josh tem seu olhar mesquinho neocolonizador com o maior respeito do mundo. Chris vacila com Dani, mas ela tá contando cada um desses vacilos num caderninho mental. E quando os suecos começam a mostrar que sua festa é perigosa, a gente compra que “é cultural”.






Ari Aster sabia onde gostaria de chegar e usa seu trabalho para esculpir as imagens que precisa. Claro que nem tudo funciona tão bem quanto o conceito pede, e o ritmo é o que mais sofre nesse processo. A segunda metade da festa se arrasta e precisa recorrer às armadilhas do gênero para dar um novo fôlego. O terror acaba servindo como justificativa para a trama que se compõe de bizarrices e rituais, mas Aster brilha mesmo é ao nos torturar de ansiedade com sua câmera cínica. 

O Mal Não Espera a Noite pode ser visto como um filme ansioso e, por isso, funciona muito melhor na primeira metade. O clímax final é trabalhado com esmero e vê-se que o longa existe para ser belo em sua violência. Quando não estamos em um desses polos, não funciona tão bem. Mas a tentativa coesa de criar um mundo próprio através de suas imagens é válida e muito bem-sucedida. Ari Aster tem um futuro brilhante pela frente, mesmo que para isso precise abandonar a trama de horror, encontrando, desse modo, uma coesão entre seus próprios talentos e interesses e as necessidades de sua câmera.
Trailer

Ficha Técnica

Título Original e Ano: Midsommar, 2019. Direção e Roteiro: Ari Aster. Elenco: Florence Pucg, Jack Raynor, William Jackson Harper, Vilhelm Blomgren, Will Poulter, Ellora Torchia, Archie Madkwe, Henrik Norlén, Gunnel Fred, Isabelle Grill, Agnes Westerland Rase, Julian Ragnarsson. Gênero: Drama, Terror, Mistério. Nacionalidade: Eua, Suécia e Hungria. Trilha Sonora Original: The Haxan Cload. Fotografia: Parwel Pogorzelski. Edição: Lucian Johnston. Direção de Arte: Csaba Lodi, Richard T. Olson, Nille Svensson e Eszter Takács. Figurino: Andrea Flesch. Distribuidora: Paris Filmes. Duração: 02h27min.

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