No Brasil não existe pena de morte. Mas em abril de 2019, o músico Evaldo Rosa morreu quando o carro de sua família foi alvejado pelo Exército Brasileiro (ver referência aqui). Em fevereiro de 2015, Vitor Santiago também estava num carro alvejado pelo Exército e ficou paraplégico. Um tribunal militar inocentou o cabo que efetuou os disparos em nome de uma "legítima defesa imaginária" (ver referência aqui). O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo com mais de 800 mil presos e 40% deles não possui condenação ainda (ver referência aqui). Esses são apenas alguns dos fatos que apontam a falência do sistema prisional no Brasil e no mundo.
Luta por Justiça é um filme preocupado em discutir uma parte dos problemas do cárcere nos Estados Unidos. É baseado na história real de Bryan Stevenson (interpretado por Michael B. Jordan), um advogado negro formado em Harvard que se muda para o interior do Alabama para defender presos no corredor da morte. A premissa é simples e deixa clara a narrativa que se desenrolará: uma crítica à pena capital e os percalços de Stevenson em seu caso.
O caso: Walter "Johnny D." McMillian (Jamie Foxx) é um lenhador, negro, preso pelo assassinato de uma jovem branca de 18 anos dentro da própria casa. Depois de um julgamento relâmpago e com poucas testemunhas, McMillian é condenado ao corredor da morte. O filme se inicia com McMillian trabalhando e sendo abordado em sua caminhonete a caminho de casa. Sabemos que algo estranho está acontecendo. Depois que Stevenson assume Johnny D. como seu cliente e analisa os autos com um mínimo de atenção, a falta de provas contra o homem deixa evidente duas coisas: a falência e o racismo do sistema judiciário americano e a inocência de McMillian.
A inclusão desses fatos no texto não configuram spoiler uma vez que a inocência em que Cretton filma Jamie Foxx no primeiro plano do filme e o racismo que Stevenson e seus clientes sofrem nas primeiras cenas deixa clara a intenção do filme: expor o horror de um sistema que prende pessoas negras enquanto método de controle populacional. Ao adentrar o Alabama, Stevenson cruza com presidiários trabalhando em uma estrada como nos filmes que se passam durante a Lei Seca. Pior, deixa óbvia o papel de escravidão moderna nos presídios norte-americanos. (Nesse ponto, a cena da execução em cadeira elétrica é forte e bastante respeitosa). Mas a história que assistimos mal fez 30 anos. Esse anacronismo que o longa sugere expõe ao espectador, especialmente o Yankee, a reflexão: que barbaridade está sendo cometida até os dias de hoje legalmente pelo Estado? Pela maior democracia do mundo?
É nesse ponto que a película de Cretton se destaca. Narrativamente, entendemos quem são os heróis, os vilões e as vítimas. Então o filme os assume como tais, mas apenas para focar na verdadeira luta de Stevenson. Não é sobre defender McMillian de um erro grotesco, é sobre batalhas diárias para expor que o problema é estrutural. Nessa toada, fica difícil se falar de spoilers em Luta por Justiça. O trabalho de formiguinha de Stevenson e sua ajudante Eva Ansley (Brie Larson) e o olho no olho com indivíduos marginalizados são o chamado à dissolução do terror impetrado pelo Estado, não a um McMillian beatificado, mas a toda uma comunidade. Não é sobre a boa vontade do advogado Stevenson, é sobre a tentativa de destruição de um sistema.
Surge, então, a necessidade de trazer uma produção recente em comparação. O Caso de Richard Jewell, de Clint Eastwood (ler aqui), lançado em 2019, trabalha pontos muito parecidos ao filme de Cretton. Nele, também baseado numa história real, Jewell é um segurança particular obcecado pela polícia e pelo senso de justiça a que julga fazer parte do ofício policial. Depois de descobrir uma mochila com explosivos num evento das Olimpíadas de Atlanta, Jewell é tratado como um herói para logo virar o principal suspeito de plantar as bombas ali. Temos nos dois trabalhos desconfianças parecidas com o aparato estatal e com o status quo (o inocente acusado, a imprensa que corrobora), mas que operam de modos muito diferentes. Se em Luta por Justiça, Stevenson briga por mudanças estruturais (ou seja, além dos indivíduos envolvidos), em Richard Jewell, Eastwood quer destruir tudo por achar que está podre. A postura radical de Eastwood, no entanto, não põe nada no lugar a não ser a figura do herói. Eastwood quer construir um mundo utópico em que todos sejam puros e morais contra um governo que usa quem precisa usar.
Stevenson e o filme de Cretton estão mais com os pés no chão. É óbvio que ele não se isenta de construir uma imagem heroica do advogado, mas esse heroísmo se dá na prática política. Richard Jewell, então, se pauta na discussão dessa figura exemplar e na injustiça que cai sobre ela, mas apenas para encontrar o verdadeiro Sonho Americano: homens brancos com armas. É de uma iconoclastia construída em volta do indivíduo branco que precisa se reerguer depois das rasteiras que o mundo lhe deu. É revolucionário na tentativa de derrubada do sistema político, mas apenas para se mostrar reacionário na página seguinte ao se voltar para as mesmas bases que elaboraram o Estado.
Luta por Justiça sabe que a mesma liberdade não existe para as comunidades negras já que qualquer tentativa de revolta seria realmente revolucionária começando no mínimo com o fim das prisões (como era uma das metas dos Panteras Negras) e terminando com o fim do capitalismo americano.
A vilania dos racistas pode parecer exagerada, contudo, o filme faz uso das notas nos créditos que nos explicam onde as personagens estão hoje, algo comum em tramas baseadas em histórias reais, mas que aqui funcionam para mostrar que as pessoas são racistas nesse nível de verdade. Elas só precisam da oportunidade. Os casos brasileiros citados no início do texto são uma tentativa de evocar nossa memória recente para o lugar que as comunidades marginalizadas se encontram. É 2020 no Brasil, mas é 1992 em Monroe, Alabama também.
Luta por Justiça é muito tocante e respeitoso que consegue colocar onde precisa os momentos de tensão e emoção junto aos de questionamento direto à pena de morte nos EUA.
Trailer
Ficha Técnica
Título original e ano: Just Mercy, 2019. Direção: Destin Daniel Cretton. Roteiro: Destin Daniel Cretton e Andrew Lanham — baseado no livro de Bryan Stevenson. Elenco: Jamie Foxx, Michael B. Jordan, Brie Larson, Rob Morgan, O’Shea Jackson Jr., C.J. LeBlanc, Lindsay Ayliffe, Tim Blake Nelson, e Greta Glenn. Gênero: Biografia, Drama. Nacionalidade: EUA. Trilha Sonoroa Original: Joel P. West. Fotografia: Brett Pawlak. Edição: Nat Sanders. Distribuição: Warner Bros Pictures. Duração: 2h 17min.
20 de Fevereiro nos Cinemas.
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