O Oficial e o Espião, de Roman Polanski


Todo filme é feito por alguém — na verdade, vários alguéns. São narrativas, ou formas de ver o mundo, particulares no sentido mais estrito do termo. O Oficial e o Espião é dirigido por Roman Polanski e trata do caso Dreyfus, na França da virada do século XIX. Alfred Dreyfus foi um oficial judeu do Exército Francês acusado de traição num processo fraudulento e condenado pela Justiça francesa e pela opinião pública. Mesmo sem provas consistentes contra o militar, o caso correu por 12 anos e deixou marcas políticas e sociais na sociedade francesa entre a primeira condenação de Dreyfus, em 1884, até sua absolvição em 1906. O caso tornou-se famoso e influente na vida social e política fracensa por ter engajado figuras célebres como o escritor Émile Zola (autor da carta aberta J'accuse...! em que defende Dreyfus e acusa nominalmente os figurões do Exército de incompetência), além de evidenciar o espírito anti-semita da sociedade francesa. Um efeito rebote ao preconceito acabou sendo a fundação do movimento Sionista, por exemplo, o que demonstra a magnitude do escândalo envolvendo o acontecido. Uma disputa de narrativas que começa com acusações sobre um indivíduo vira uma discussão sobre como levar a República francesa a partir dali.

Mas O Oficial e o Espião não se interessa pelo caso em si, apenas usa sua popularidade para discutir a força de uma narrativa. Por essa razão, não vemos, por exemplo, um mosaico do processo por seus vários ângulos, mas acompanhamos a investigação do Coronel Georges Picquart (Jean Dujardin). Peça chave na prisão de Dreyfus (Louis Garrel), Picquart torna-se chefe do batalhão de Inteligência depois da condenação e percebe que cometeu um erro depois que passa a ter acesso às provas. O filme mostra Picquart em seus dilemas morais que o dividem na vida militar, enquanto defende a verdade em que acredita, e na vida pessoal, com uma subtrama de adultério com Pauline Monnier (Emmanuelle Seigner), uma mulher casada. A maneira como, de certa forma, o longa e Picquart tratam Pauline evidencia seu caráter de personagem presente para testar o protagonista. Mas deixa clara também a verdadeira intenção do roteiro e qual tema está sendo trabalhado.

Por esta razão, o roteiro trata o caso como tomada de consciência de Picquart, mas só dispõe do recolhimento de provas como instrumento para isso. A investigação se torna uma obrigação para que a narrativa avance, fica rígida e sem muitos dilemas, o que deixa tudo muito enfadonho e desinteressante. A segunda metade é focada no contra-ataque ao Estado francês, mas também sem muito peso dramático e pouca causalidade entre os fatos — o que faz Polanski utilizar textos diretos na tela para dar algumas informações. Os 132 minutos de duração parecem muito maiores do que realmente são.


O filme inteiro, portanto, soa mais como uma declaração de Polanski sobre sistemas radicalizados e o peso da opinião pública sobre um indivíduo. Essa declaração não é apenas uma opinião, mas uma defesa pessoal de alguém que foi condenado num tribunal. Em 1977, Polanski foi declarado culpado por drogar e estuprar uma garota de 13 anos em Los Angeles. Na era do MeToo, Polanski (ao lado de Woody Allen e, mais recentemente, Harvey Weinstein) e o paradigma da cultura do cancelamento afirmou que sentiu-se um pouco como Dreyfus, alvo de escárnio público e ostracismo social (veja aqui). Ele esqueceu da diferença inicial: Dreyfus era absolutamente inocente.

Mas, ao se comparar com o militar injustiçado, Polanski abre uma chave de interpretação para o filme que nos leva a crer que as duas épocas podem ser comparadas também. Na era das maravilhas tecnológicas começando a explodir com a chegada da fotografia, do cinema e do automóvel, o longa enxerga aquele mundo quase como paródia. São exemplos o comentário de um dos chefes de Picquart ao ver a foto que comprovava uma tese da investigação "olha o que é possível hoje em dia"; o escritório do grafólogo que media a circunferência do crânio das pessoas; os duelos como resolução de conflitos jurídicos. Todos esses eventos antiquados sendo usados como "provas" contra Dreyfus e que confirmam a narrativa oficial. A sociedade seria, então, essa disputa de forças em nome de suas respetivas narrativas. O que em parte é verdadeiro, no filme é colocado como esquema a ser desmascarado. O cinema é o responsável por encontrar essa verdade factual e comprová-la. No fim, é uma auto-indulgência que zomba dos processos ao dizer algo como "A objetividade da Ciência de lá não tem mais credibilidade, talvez informações tidas como reais hoje não sejam mais amanhã".


O longa é como uma missão para Polanski. Em seu design de produção com figurinos, canetas, papéis e mobiliário impecáveis, a câmera é certeira onde precisa estar. Uma rigidez que evoca a firmeza de um discurso claro, trazendo as informações que precisam ser dadas, mesmo que elas não sejam sobre o caso. É um filme que não respira nem dá liberdade ao espectador deduzir. Apesar da história interessante e muito comentada, o filme não traz novos olhares, informa mal, cansa mais que entretém. Mas também contribui pouco no debate sobre a radicalização de ideologias e a facilidade que isso se torna ódio e perseguição.

As interpretações encontram o ponto perfeito no desafio de longos diálogos de época que soem naturais. A ambientação do período também é impecável partindo da vida nas cidades até o mais delicado detalhe do papel utilizado como prova. O que poderia ser um ótimo ponto de partida (aliado a uma visão madura de episódios de injustiça) é só até onde O Oficial e o Espião chega. Ao se fechar para o diálogo, a produção escolhe uma abordagem quase cínica e muito pouco interessante.

Trailer

Ficha Técnica 

Título original e ano: J'accuse, 2019. Direção: Roman Polanski. Roteiro: Robert Harris e Roman Polanski - baseado no livro de Robert Harris. Elenco: Jean Dujardin, Louis Garrel, Emmanuelle Seigner. Gregory Gaebois, Hervé Pierre, Didier Sandre e Melvil Poupad. Gênero: Drama, história, thriller. Nacionalidade: França, Itália. Trilha Sonora Original: Alexandre Desplat. Fotografia: Pawel Edelman. Edição: Hervé de Luze. Figurino: Pascaline Chavanne.  Distribuição: Califórinia Filmes. Duração: 132 min.
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Escrito por Marisa Arraes

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