Maurício (Juan Paiva) é calouro no curso de medicina de uma universidade federal. Dividindo sala com um mar de corpos brancos, os únicos corpos negros além do dele são os cadáveres da aula de anatomia. O rapaz se vê nos defuntos ao entender que estatisticamente era mais fácil que seu futuro de jovem negro periférico resultasse nele ser uma das carcaças estudadas por aquela turma ao invés de ocupar uma das cadeiras do corpo discente.
Partindo dessa identificação, o protagonista passa a investigar por que aqueles corpos estão ali sem identidade ou procedência conhecida, destinados a serem enterrados como indigentes em uma vala comum da prefeitura enquanto dezenas de famílias pretas procuram por seus filhos desaparecidos. A jornada de Maurício não se limita somente a rastrear seus passados, mas também a fechar esse ciclo da forma mais respeitosa possível. Tanto social quanto espiritualmente. Vale ressaltar que o diretor, Jeferson De, consegue representar a umbanda de forma belíssima e rara, sem a exotização ou a aura alienígena que normalmente acompanham os retratos das práticas religiosas afro.
Evidente que nesse processo o jovem se depara com barreiras legais e burocráticas típicas de um sistema que normalizou o sofrimento preto. Mesmo os colegas de turma que decidem ajudá-lo tentam dissuadi-lo algumas vezes dizendo que o esforço não vale a pena e que não dará resultado. Em dado momento, sua amiga Suzana chega a dizer algo como “Nossa, esse povo ainda está aí” ao ver pela segunda vez a manifestação das mães dos desaparecidos, expondo não só seu privilégio branco como a incapacidade de empatia verdadeira a vidas negras.
Em diversas ocasiões, o filme esbarra em um didatismo que soa forçado. E aí residiria seu grande defeito, a um primeiro olhar. Mas se esse escancaramento de obviedades é um erro enquanto obra artística, enquanto peça de comunicação, ele é crucial no Brasil de 2020. Apenas uma coisa incomoda: parece infantil e reducionista a ideia de concentrar em apenas um personagem os atos racistas sofridos dentro da faculdade. Desta forma, Gustavo se torna um “vilão de malhação”, malvado e até maniqueísta em meio a vários estudantes bonzinhos que, quando são vagamente preconceituosos, não o fazem por mal. Sendo que sabemos que em uma turma de medicina da vida real, não há somente um único Gustavo. Maurício sofreria bullying e perseguição sistematizados.
Para além disso, Jeferson De consegue criar uma narrativa envolvente e equilibrada e conta com vários dos maiores nomes da atuação brasileira como Lázaro Ramos, Zezé Mota, Aílton Graça, João Acaiabe e Léa Garcia em papéis secundários, criando uma sensação de cooperação entre a comunidade negra enquanto Maurício interage com estes. Também não é coincidência que seus amigos brancos da faculdade sejam uma mulher e um jovem gay, que do alto de seus privilégios da Zona Sul do Rio de Janeiro conseguem - mesmo que aos trancos - compreender as necessidades de seu colega cotista.
Trailer
Ficha Técnica
Título original e ano: M-8 - Quando a Morte Socorre a Vida, 2020. Direção: Jeferson De. Roteiro: Jeferson De e Felipe Sholl. Autor da obra original: Salomão Polakiewicz. Elenco: Juan Paiva, Raphael Logam, Mariana Nunes, Giulia Gayoso, Bruno Peixoto, Fábio Beltrão, Zezé Motta, Ailton Graça, Alan Rocha, Henri Pagnoncelli, Malu Valle, Léa Garcia, Dhu Moraes, Pietro Mario, Tatiana Tibúrcio, Lázaro Ramos, Bernardo Dugin, Sérgio Loureiro, Higor Campagnaro, Rocco Pitanga. Gênero: Drama. Nacionalidade: Brasil. Diretor de Fotografia: Cristiano Conceição. Diretor de Arte: Daniel Flaksman. Figurinista: Cris Kangussu. Produtora de elenco: Marcela Altberg. Produtor associado: Romulo Marinho Jr.. Produção: Iafa Britz e Carolina Castro. Colaboradores: Carolina Castro, Cristiane Arenas, Iafa Britz e Paulo Lins. Produtora: Migal filmes. Produtora associada: Buda Filmes. Patrocínio do BRDE/FSA-Ancine. Distribuidora: Paris Filmes. Duração:
03 de Dezembro nos Cinemas
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