O documentário não é somente um gênero cinematográfico visto que existem documentários de vários formatos e podemos encontrar os dramáticos, os históricos, de comédia, musicais, hibridismos com a ficção e até alguns que se assemelham ao formato de reportagem. Mas não podemos negar que o termo traz uma conotação que coloca o espectador à espera de um tipo de filme específico. A expectativa, normalmente, é a de que o filme tratará de fatos (da verdade, talvez?), com alguma separação entre as personagens e a máquina cinematográfica.
O argumento pode parecer tirar a força do filme, dando a ele uma sensação de falseamento das relações e dos acontecimentos, mas o que acontece é justamente o contrário. Em vez de se separar de suas personagens atrás de um aparato técnico, Lifshitz se aproxima de todos com seus close-ups que ocupam quase todo o filme. Tampouco, o diretor se faz presente na história como observador ativo – método comum nos documentários que buscam questionar a aparência de verdade ou isenção que o “gênero” cinematográfico suscita em níveis mais superficiais. Recusando ambas as abordagens, Lifshitz dá a seus personagens as imagens que precisam para levar ao colégio, à cidade, à França, quiçá ao mundo, a mensagem que precisa ser ouvida: Sasha é uma garota que merece todos os direitos de uma criança, seja ela menina ou menino.
Afinal, a condição social que Sasha habita é o limbo. Não consegue viver plenamente sua vida de garota que é, mas também não recebe o mesmo tratamento como o menino que a veem. Esse lugar difuso é dilacerante, mas Lifshitz se abstém de conciliar as visões entre os lados ou de colocar a luta em uma perspectiva política (por exemplo, o movimento LGBT francês, dados históricos, ou qualquer coisa que o valha). O filme escolhe um lado, o de Sasha. Sem questionar qualquer condição, o filme dá a Sasha o único tratamento humano possível, enxergar a existência da garota por quem ela é. Acompanhamos a abordagem cinematográfica do acolhimento.
Aqui, a forma do longa também se mostra como limbo entre a ficção e o documentário. Não exatamente ao misturar cenas de um formato com o outro, mas ao perceber que definições são limitadoras. Assim como cada ser humano tem seu direito de ser, não cabe ao cinema demarcar-se por gêneros que se mostraram ultrapassados no mundo. Gêneros que existiam para definir, circunscrever e formatar visões sobre o mundo, sobre nossas relações e sobre nossos próprios corpos.
Pequena Garota é um filme simples, mas muito forte. Sua potência se encontra justamente na escuta, não se faz como a mosca na parede dos documentários estadunidenses dos anos 50 e 60, mas também não se intromete numa batalha que é alheio e que provavelmente repercutirá pelo resto da vida de Sasha. Lifshitz apenas escuta e reverbera as vozes que decidiu iluminar.
Trailer
Título original e ano: Petite Fille,2020. Direção: Sébastien Lifshitz. Elenco: Sasha. Gênero: Documentário. Nacionalidade: França. Som: Yolande Decarsin. Fotografia: Paul Guilhaume. Edição: Pauline Gaillard. Produção: Muriel Meynard. Distribuição: Imovision. Duração: 85min.
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