Berlin Alexanderplatz é um dos patrimônios máximos da Alemanha. Tal afirmação vale tanto para a praça Alexanderplatz, marco geográfico localizado no centro de Berlim, quanto para o romance Berlin Alexanderplatz, de Alfred Döblin. O livro, cujo enredo ocorre ao redor da praça que dá nome à história, é protagonizado por Franz, um ex-presidiário em busca de redenção e de um meio de vida honrado num mundo repleto de atalhos e becos sem-saída. Considerado um dos maiores expoentes da literatura expressionista alemã, foi adaptado para o Cinema em 1931 e posteriormente para a TV, em 1980, na influente minissérie roteirizada e dirigida por Rainer Werner Fassbinder. Devido ao legado que o nome “Alexanderplatz” carrega na cultura alemã, uma nova adaptação para as telas era inevitável.
Com a missão de atualizar a trama, o diretor de origem afegã, Burhan Qurbani, situa na Berlim do século XXI o roteiro da nova versão (também co-roteirizada por ele). Nesta releitura, o papel de protagonista é ocupado por Francis (Welket Bungué), um imigrante ilegal da Guiné-Bissau e único sobrevivente de um naufrágio no Mediterrâneo. Quando é desovado pelo mar na costa da Alemanha, Francis não está totalmente sozinho. Demônios de seu passado o acompanham. A busca pela redenção, característica herdada da obra de Döblin, é um dos sentimentos que conduzem o personagem, fato constantemente reforçado pela voz lírica, quase etérea, que narra em off as desventuras do homem. Esta voz relembra durante os 5 capítulos (e um epílogo) nos quais o longa se divide o compromisso que Francis fez consigo mesmo de se tornar uma pessoa melhor e conquistar uma vida digna. Contudo, as degradantes condições de trabalho para um imigrante clandestino acabam fazendo com que ele seja cooptado pelo crime organizado, representado por meio do imprevisível Reinhold (Dascha Dauenhauer).
Trailer
Título original e ano: Berlin Alexanderplatz, 2020. Direção: Burhan Qurbani. Roteiro: Martin Behnke e Burhan Qurbani - adaptado da obra de Alfred Döblin. Elenco: Welket Bungué, Albrecht Schuch, Jelia Haase, Annabelle Mandeng, Joachim Król, Richard Fouofié Djimeli, Mira Elisa Goeres, Rufina Neumann, Lena Schmidtke, Michael Davies, Faris Saleh, Nils Verkooijen. Gênero: Drama. Nacionalidade: Alemanha, Países Baixos, França e Canadá. Trilha Sonora Original: Dascha Dauenhauer. Fotografia: Yoshi Heimrath. Edição: Alexandra Koknat, Suse Marquardt. Figurino: Anna Wüber. Distribuição: A2 Filmes. Duração: 03h3min.
Esta não é uma história de superação. É a história da ascensão e queda de um apátrida lutando contra as probabilidades, para conquistar uma vida respeitável. É bastante sintomático que, a despeito de todas as promessas meritocráticas que uma metrópole como Berlim parece oferecer, Francis precise recorrer ao submundo da criminalidade para encontrar pertencimento e algum conforto, sendo acolhido e nutrindo fidelidade por pessoas em quem não deveria confiar. É assim que Francis (agora, sim, conhecido como “Franz”) passa a ser tratado devidamente como um ser humano pela sociedade e, como consequência, passa a considerar a si próprio um alemão legítimo. “Posso afirmar que eu sou o sonho alemão”, diz ele a outros imigrantes ilegais que seduz com as mesmas miragens que foram mostradas a ele. É um triste ciclo sem fim.
Dentre as promessas tentadoras que o crime oferece, estão mulheres. Este é um ponto bastante delicado do longa que é impossível de ser ignorado. Para uma obra cuja proposta é se passar no mundo atual, a forma como as personagens femininas são tratadas não soa nada diferente do respeito oferecido a elas nos velhos filmes de gângster. São personas decorativas cuja existência no roteiro é justificada quase sempre para serem acessórios. Todas elas são tratadas como mercadorias sexuais, ou mero interesse amoroso do protagonista. Neste último caso, o cargo é ocupado por Mieze (Jella Haase). A construção dramática da personagem abre espaço para o velho chavão da mulher que funciona como elo do protagonista com o que restou de bondade na alma dele (é ela, a narradora que relembra que Franz é uma boa pessoa) e inevitavelmente será usada pelos vilões como ponto fraco do herói. Ainda que conte com boas atuações femininas, é uma pena que um filme que se propõe a ser tão inovador em relação ao material no qual é inspirado, escolha abraçar clichês misóginos tão ultrapassados.
A nova versão de Berlin Alexanderplatz impressiona por sua excelência técnica. A direção de fotografia de Yoshi Heimrath é muito bem-sucedida em relação a forma como ilumina e captura a pele negra em câmera, combinando com contrastes marcados e luzes neon que dão ares de sonho dentro de um filme tão dolorosamente real. Além disso, o senso de profundidade alcançado pelas lentes traz um senso de imersão que torna a Berlim do título uma personagem em si. A trilha sonora de Dascha Dauenhauer, que mistura orquestra tradicional e elementos eletrônicos, emula os sentimentos de isolamento e desconforto do protagonista em seu novo mundo e escalona a um grande crescendo quando Franz conquista este mundo (antes de sua derrocada).
A epopeia de 3 horas de duração pode intimidar por ser tão longa, mas merece atenção por sua ousadia ambiciosa e seu apelo universal ao ecoar temas clássicos e sentimentos tão humanos.
HOJE NOS CINEMAS
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