Após o surgimento de rumores de corrupção por parte do presidente sírio Bashar al-Assad, a população já insatisfeita com o governo se rebelou contra ele, exigindo instauração de um regime democrático no país. Assim, em 2011, teve início a Guerra da Síria, revolta civil que foi respondida violentamente pelo exército sírio. A oposição ao governo ganhou força e apoio midiático e internacional, ao levantar bandeiras como defesa dos direitos humanos e liberdade de imprensa. Contudo, tirando proveito do caos generalizado do conflito, o grupo extremista Estado Islâmico (IE) acabou infiltrando-se no movimento e passou a reivindicar territórios dentro do país. Em 2014, o IE se autoproclamou um califado e declarou a cidade de Raqqa sua capital. Desde então, a população passou a ser vítima de um regime autoritário que intimidava, mutilava e executava publicamente qualquer pessoa que fosse considerada “infiel”. Atentados terroristas realizados pelo IE em outros países tornaram Raqqa alvo de constantes bombardeios.
9 Dias em Raqqa, de Xavier de Lauzanne, registra a população da cidade tentando reconstruir suas vidas à partir das ruínas da guerra, após a expulsão do Estado Islâmico da região. Com estrutura de diário, o documentário acompanha durante 9 dias Leila Mustapha, prefeita de Raqqa. Uma personagem cativante e interessantíssima, Leila é um facho de esperança em meio aos escombros. A jornalista e escritora Marine de Tilly a segue durante os dias da gravação, entrevistando-a para o que viria a se tornar o livro “La Femme, La Vie, La Liberté”, ainda sem tradução no Brasil. Os relatos extraídos deste encontro são igualmente tocantes e poderosos. Leila é uma líder numa sociedade tentando se curar de um regime opressor que subjulgava e violentava mulheres de forma vil e desumana. Sua resiliência em conciliar e restaurar uma cidade que teve seu orgulho roubado é bastante inspiradora.
A equipe do documentário percorre o território de Raqqa, entre seus prédios destruídos e monumentos que outrora foram cenários de horrores indescritíveis, mostrando a rotina de Leila como a autoridade responsável por liderar o comitê civil que planeja os projetos de reconstrução e restauração da cidade. Além de ter que lidar com tais responsabilidades, Leila, assim como toda a população, vive um luto pela destruição do mundo em que vivia e permanece em contínua vigilância contra possíveis células do Estado Islâmico ainda em atividade no local.
Apesar dos méritos do documentário, 9 Dias em Raqqa acaba pecando ao se escorar mais do que deveria no carisma de sua protagonista e no símbolo que ela representa, deixando de lado questões mais críticas e aprofundadas, como as mecânicas imperialistas que direta ou indiretamente colaboraram para o surgimento e fortalecimento do Estado Islâmico, preferindo romantizar a luta de Leila, mesmo quando ela própria denuncia falhas diplomáticas e a ausência de ajuda internacional. Em determinado ponto, é exibido trecho de pronunciamento de Donald Trump anunciando a saída de suas tropas da Síria: “A região é deles, são eles que devem cuidar dela”, diz, se referindo ao risco do retorno do Estado Islâmico e se isentando de qualquer responsabilidade com esta questão humanitária. Se a comunidade internacional não parece ter interesse em propor soluções para esta crise, tampouco o filme tenta. Leila é um exemplo, um ícone de força feminina, sim. Mas ela não deveria precisar ser uma heroína pelo seu povo. Ninguém deveria precisar.
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