Mil Cortes, de Ramona S. Diaz | É Tudo Verdade

 

A ascensão de governos fascistas pelo mundo deixou a mídia, a ciência política e eleitorados em geral bastante confusos no fim da década de 2010. E, ainda que algumas pessoas afirmem que esta onda esteja passando, a ressaca moral que este fenômeno trouxe para a sociedade parece ter causado danos profundos no senso de ética política e no próprio conceito de Democracia.

Também foi assim nas Filipinas, onde a barbárie foi legalizada em nome de um “bem maior”. Em 2016, Rodrigo Duterte foi eleito tendo como principal plataforma de campanha uma dita Guerra às Drogas, solução radical para um problema que, supostamente, destruía as vidas de milhares de jovens no país. Este argumento, o discurso antipolítico e as declarações violentas do então candidato, carregadas de misoginia e obscenidades, logo conquistaram o apoio popular do eleitorado filipino. Tendo carta branca como presidente, foi responsável pelas mortes de centenas de pessoas já em seus primeiros meses de mandato. Forças policiais e simpatizantes do presidente realizavam verdadeiras chacinas nas ruas todas as noites. Em seus discursos inflamados, Duterte abertamente ameaçava a população : “Se você usar drogas ilícitas, vou matar você”. Tais afirmativas, no entanto, eram ovacionadas por plateias em polvorosas que apoiavam as medidas.


Ficha Técnica

Título original e ano: A Thousand Cuts, 2020. Direção e roteiro: Ramona S. Diaz. Entrevistados: Maria Ressa, Pia Ranada, Ramblo Talabong, Patricia Evangelista, Mocha Uson, Bato Dela Rosa, Samira Gutoc. Gênero: Documentário. Nacionalidade: EUA. Trilha Sorona Original: Sam Lipman. Edição: Leah Marino. Fotografia: Gabriel Goodenough e Jeffrey Johnon. Duração: 98min.

Mil Cortes acompanha como a jornalista Maria Ressa e sua equipe do site de notícias Rappler denunciam as constantes violações de direitos humanos cometidos no país e, por isso, passam a sofrer perseguições e tentativas de censura por parte do governo em exercício. Uma campanha de difamação online tenta desacreditar o trabalho do time jornalístico e torna Ressa alvo de ameaças, enquanto Duterte tenta modificar leis a bel-prazer para incriminá-la e silenciá-la. Paralelamente a isso, o documentário também segue entusiastas do presidente, como a popstar Mocha Uson. Seu posicionamento político nas redes sociais rendeu a ela um cargo como produtora de conteúdo oficial do governo. Em síntese, ela produz propaganda pró-governo para as redes sociais, ainda que não concorde com esta interpretação de seu trabalho: “Ser nacionalista é propaganda? Ninguém é troll por ser patriota!”.

Ao mostrar os dois lados de uma mesma narrativa política, o poderoso documentário da cineasta Ramona S. Diaz ilustra como a polarização ideológica é capaz de construir sensos de realidade totalmente distintos dentro de um mesmo país e como as redes sociais e as fake news são usadas para acentuar ainda mais estas disparidades de opinião. Contudo, Diaz acertadamente não cai na armadilha de mostrar os dois lados da história como equivalentes. Mesmo que tente humanizar os apoiadores do governo opressor de Duterte, o mesmo tratamento não é oferecido ao próprio Duterte. Ele é retratado como um líder populista autoritário que usa o medo como instrumento de controle da população. “A violência é minha força”, diz ele em entrevista para Ressa, reforçando seu orgulho pelas mortes da juventude que jurou proteger com sua Guerra às Drogas. Mil Cortes expõe tais contradições indo direto à fonte: a motivação destes personagens reais, suas paixões e, principalmente, medos.

A denúncia social do filme de Diaz se concentra na política das Filipinas, mas é bastante representativo do momento vivido pelo mundo nos últimos anos. A liberdade de imprensa vem sendo sistematicamente tolhida por governantes que usam os poderes que conquistam através de mecanismos democráticos para moldar a realidade de acordo com suas opiniões individuais. É uma espécie de “terraformação ideológica”, que consegue naturalizar para um povo que as mortes de grupos marginalizados e socialmente vulneráveis é algo aceitável. Ou pior: algo necessário. É a isso que Maria Ressa se refere quando fala sobre “a morte por mil cortes” da Democracia. Pequenas feridas que, por si só, não representariam perigo. Mas que, juntas, podem matar.

Serviço:
Veja a programação completa do É Tudo Verdade disponível aqui.
Serviço
10.04 - 17h - no LOOKE
MIL CORTES
Dir. Ramona S. Diaz / Filipinas, EUA, 2020, 98’ 
Competição Internacional de Longas

Escrito por Petterson Costa

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