Veneza


A segunda direção de Miguel Falabella para o cinema chega aos cinemas esta semana pautando a realização de sonhos no campo do realismo fantástico. Inspirado na peça do argentino Jorge Accame, Veneza mostra referências claras a Fellini e traz a estrela espanhola Carmen Maura no papel da matriarca Gringa. 

Gringa é uma meretriz espanhola que fez parte da pequena porcentagem das mulheres de sua profissão que foram tiradas da “zona” pelo casamento com um homem abastado e apaixonado. No entanto, ela rouba dinheiro do marido e foge para o Brasil, onde pode realizar seu sonho: gerenciar a sua própria casa de prostituição. A trama de Veneza dedica certo tempo a contar essa história através de flashbacks intercalados com a linha do tempo principal, na qual Gringa está muito velha, doente, cega e se arrepende do que fez com seu marido Giacomo, com quem iria para Veneza não fosse a fuga.

As demais personagens do elenco principal são Rita, Madalena e Gerusa - outras prostitutas que Gringa acolheu em momentos difíceis de suas vidas - e Tonho, o filho de uma já falecida companheira da espanhola. O roteiro reitera constantemente o funcionar dos cinco como uma família, chegando a colocar isto em palavras. O fato de que Tonho abusa sexualmente das demais em troca de alguns serviços que presta para o bordel e que ocasionalmente as agride parece não estragar essa dinâmica e não é questionado em momento nenhum, o que por si só já é um dos pontos baixos do filme.


O longa-metragem tem um registro mágico endossado pela linguagem teatral, circense e fantástica empregada desde o início pelo letreiro, pelo cenário externo do bordel e por cenas como a primeira, que estabelecem o tom. A impecável direção de arte e a fotografia que por vezes remete a um teatro filmado têm papel essencial nesse aspecto. Tal característica atinge seu ápice ao final da obra, mas mesmo antes, consegue emocionar. O enredo parece se dar em um tempo suspenso que é impossível definir com exatidão. Embora a estética de diversos elementos aponte para décadas remotas, Madalena menciona para sua amante a possibilidade do uso da internet. A tecnologia contemporânea não chega a ser vista em tela. E à exceção de uma cena em que Rita percorre as ruas da cidade, os cenários e objetos condizem com tempos passados. A ambientação imprecisa contribui para a evocação de um clima fabulesco. Todavia, há uma armadilha nisto. Essa impressão de uma bolha temporal mágica funciona perfeitamente na diegese. Mas quando este mesmo elemento se aplica à direção e produção da obra, não se pode dizer o mesmo. Veneza parece um filme do século XX. Principalmente na visão romantizada que confere à prostituição. As personagens passam por dificuldades financeiras e é evidente que são solitárias. Mas o mesmo olhar mágico recai sobre esses fatos e ao invés de pessoas marginalizadas, as mulheres são tratadas como sonhadoras, batalhadoras e livres. O sexo para elas não é algo importante. É utilizado como moeda de troca tanto para ganhar dinheiro quanto para pagar por serviços e favores e esta questão é tratada com frivolidade. Por vezes chegam a manifestar ojeriza e tédio ao cumprirem seu trabalho, mas tal reação não passa de um chiste pontual e não chega a ser tematizada.

Outro elemento antiquado é o arco narrativo da personagem trans. Amante de Madalena, Júlio está em processo de transição e se encanta ao vestir uma peruca emprestada e ao tocar os seios da companheira e imaginá-los em si. A trama não estava presente na peça que deu origem ao filme. O que traz questionamentos: se Falabella inseriu esse plot em um roteiro que é inteiro fantasioso e mostra os acontecimentos ruins sob uma ótica poética e metafórica, por que dar justamente à personagem trans um desfecho trágico? Desfecho este sem consequências, sem tom de denúncia, sem gerar sequer um debate. Por que a dura realidade do Brasil de 2021 se aplica a Júlio, mas todo o restante é mágico e sublime (inclusive a prostituição)?

Sopesados os elementos e os impactos que os mesmos possuem, Veneza é uma obra consistente em termos técnicos e visuais. O elenco de renome está bem dirigido e convence em seus papéis. A identidade visual é firme em sua proposta e, junto aos atores, acaba por emocionar. Não obstante, é um filme que já nasce ultrapassado por sua identidade narrativa.

Trailer


Ficha Técnica
Título original e ano: Veneza, 2021. Direção e Roteiro: Miguel Falabella. Elenco: Dira Paes, Du Moscovis, Carmen Maura, Carol Castro, Danielle Winits, Caio Manhete, Roney Villela. Gênero: Fantasia, Drama. Nacionalidade: Brasil. Direção de Arte: Tulé Peake Trilha Sonora Original: Josimar Carneiro. Edição: Diana Vasconcellos. Fotografia: Gustavo Hadba. Distribuição: Imagem Filmes: . Duração: 91min.

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Escrito por Luana Rosa

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