Se Hollywood foi pioneira em propor que carros falam e tem sentimentos, ao no final dos anos 60, com a série de filmes em que um Fusca chamado Herbie era protagonista, os anos 2000 trouxeram os automóveis tunados que podem até saltar de prédios como visto em ''Velozes e Furiosos 7" (leia texto aqui). No Brasil, sair do âmbito usual de narrativas pode trazer estranheza muitas vezes, mas também quando esta é desviada, o público amante da sétima arte corre atrás e vira fã.
A diretora Renata Pinheiro, que também é roteirista, produtora, editora, atriz, designer de produção, diretora de arte, tem um baita currículo. Com esta última função tem mais de onze trabalhos e em muitos deles foi parceira de artistas fenomenais como Cláudio Assis, Lucrécia Martel, Selton Mello e Hilton Lacerda. Das nove produções que trabalhou na condução ou foi co-diretora ou dirigiu solo todo o desenvolvimento do longa. Em Carro Rei, seu mais recente filme, apresenta uma história distinta da leva de películas que temos visto nos últimos anos e impressiona pela coragem e desenvoltura.
No enredo, o menino Uno (Luciano Pedro Jr.) é filho de um casal que consegue conquistar a própria frota de Táxi nos anos 90 e dali tirar o seu sustento. Uno percebe que consegue se comunicar com um dos veículos e sequer se liga na surrealidade da situação. O garoto é super doce e carinhoso e faz questão de sempre incluir o tio Zé Macaco (Matheus Nachtergaele) nas fotos em família. Belo dia, após uma briga com o marido, a mãe do pequeno pega o carro e o automóvel se dá conta que ela está com a atenção prejudicada e poderá atropelar o próprio filho ali brincando na rua. Assim, faz com que o volante se direcione para o lado deixando o garoto seguro. Contudo, a mulher sofre um grave acidente. Dali, pulamos para muitos anos a frente e assistimos Uno chegar em casa e conversar com o pai. Ele afirma ter passado no vestibular, mas confessa que não foi para o curso de Administração que o homem gostaria e revela que estudará Agroecologia e Agrofloresta como é de sua vontade. O pai de Uno se enfeza e o expulsa de casa. Ele procura consolo na comunidade e encontra. Mas os movimentos dos acontecimentos acabam trazendo o garoto para perto do pai novamente e também do tio. Tudo se deve ao fato de que uma lei aprovada impedirá que carros com mais de quinze anos de uso não mais transitem e a frota de Táxi que uma vez foi o orgulho da família está agora arruinada.
Zé Macaco, que mora distante da cidade em um ferro velho, mantém guardado o carro que se comunicava com Uno desde o acidente e o mecânico, a pedido do sobrinho, reforma o mesmo e o traz a vida até mesmo o dando voz. A idéia surge como uma tentativa de ter sucesso novamente e assim reformarem todos os veículos. Porém, o que o trio não esperava é que a máquina que agora se chama ''Carro Rei/King Car'' se tornaria humana demais e que voltasse todas as suas forças para tomar o poder no lugar.
O imperdível Carro Rei chega aos cinemas esta quinta-feira (30) com distribuição da Boulevard Filmes após ter passado por inúmeros festivais dentro e fora do país e ganho prêmios e comentários de destaque.
Trailer
Ficha Técnica
Título original e ano: Carro Rei, 2021. Direção: Renata Pinheiro. Roteiro: Sergio Oliveira, Leo Pyrata, Renata Pinheiro. Elenco Principal: Matheus Nachtergaele, Luciano Pedro Jr, Jules Elting, Clara Pinheiro, Adélio Lima, Ane Oliva. Voz do Carro Rei: Tavinho Teixeira. Gênero: Fantasia, drama. Nacionalidade: Brasil. Trilha Original: Dj Dolores. Direção de Fotografia: Fernando Lockett. Direção de Arte: Karen Araújo. Edição: Quentin Delaroche. Edição de Som: Guile Martins. Diretor Assistente: Sergio Oliveira. Preparação de Elenco: Raissa Gregori. Casting: Marcelo Caetano. Produção: Sergio Oliveira. Produtora: Aroma Filmes. Produção Executiva: Carol Ferreira, Sergio Oliveira. Distribuição: Boulevard Filmes. Duração: 97 min.
Pinheiro nos entrega um filme que tem em principal o tom esverdeado. Uno, o garoto com o qual o veículo conversa é amante da natureza e sua simplicidade transborda. É amoroso, prestativo e determinado. Tenta proteger os seus quando percebe que o que está acontecendo pode estar fora do controle, mas ainda assim não se perde. A produção se inicia, aliás, com imagens de carros totalmente destruídos meio a natureza verde de uma pequena cidade de Pernambuco. Um contraste que nos faz refletir sobre o tempo, a velhice e ''nosso prazo de utilidade'' para o sistema vigente.
O sexo masculino é visto de diversas formas aqui além da figura de Uno. Se temos um tio mecânico com uma construção corporal animalesca, temos um pai preocupado com o âmbito comercial e também políticos sedentos para auxiliarem o comércio e levarem o seu. A força feminina vista na mãe do protagonista, na crush e em uma artista plástica que adentra a cena e mantém um relacionamento carnal com Carro Rei também é bastante variada. A mãe demonstra desejos e opiniões próprias e não aceita ser rebaixada, a crush é ultra mega inteligente, tem voz de líder e está sempre modificando seus experimentos com a terra que faz seus plantios orgânicos ou hormonais e consegue ter papos interessantérrimos com Uno que não denotam contexto amoroso. Já a artista que brota no ferro velho de Zé Macaco falando alemão traz escancarada a sua luta contra o patriarcado em sua arte feita com carimbos vaginais iluminados. A relação que constrói com a máquina falante se dá em momentos tórridos na chuva ou após o anoitecer e nos estarrece por tanto desejo correspondido.
A criatividade na escrita do roteiro, que é assinado por Sergio Oliveira, Leo Pyrata e Pinheiro, vai além da trama absurda. Se encontra também no jogo de palavras (Caruaru - Carroaru) ou como estas detalham os perfis dos personagens (basta Matheus Nachtergaele mostrar seu animalesco Zé Macaco na tela). Os atores demonstram harmonia, mas um ou outro se sobressai e quem rouba a atenção é sim Nachtergaele. A voz do Carro Rei é de Tavinho Teixeira e tem inúmeras conotações (sexual, cômica, vilanesca) e se encaixa bem. Pelo filme, ouve-se músicas mais modernosas e seu ato final decide se mocinhos vão vencer vilões e trazer a paz ao mesmo tempo que se demonstra o quão irracionais podemos nos tornar.
Com um trabalho ambicioso, Pinheiro nos deixa pilhados para ver o que ela fará em seus próximos filmes já que este é uma deliciosa experimentação que joga contra a corrente do gosto comum. O filme foi ganhador dos Kikitos de ''Melhor Filme'', ''Melhor Som'', ''Melhor Direção de Arte'' e Melhor Trilha Sonora'' e recebeu ainda prêmio especial do Júri por 'Melhor Longa Metragem Brasileiro de 35mm'' no Festival de Gramado em 2021.
Avaliação: Três líquidos azuis energizantes (3/5).
30 de Junho nos Cinemas
0 comments:
Postar um comentário
Pode falar. Nós retribuímos os comentários e respondemos qualquer dúvida. :)