Em 1878, o fotógrafo inglês Eadweard Muybridge foi contratado por Leland Stanford, ex-governador da Califórnia e entusiasta de corridas de cavalo, para provar com imagens que um cavalo fica com as quatro patas em suspenso por um breve momento durante o galope. O cavalo, que se chamava Occident, estrelou o que se considera a primeira experiência com imagens em movimento que culminou nas tecnologias que se tornaram o cinema.
144 anos depois, essa história é bastante conhecida por quem se interessa por História do Cinema e conhecemos o nome até mesmo do cavalo usado para as fotografias. Mas nada sobre o jóquei que o guiou no experimento. O homem negro presente no nascimento do cinema teve seu nome esquecido e é visto como acessório do experimento, assim como o cavalo e as câmeras.
Em Não! Não Olhe!, Jordan Peele imagina o cinema como um todo a partir deste jóquei. OJ (Daniel Kaluuya) e Emerald Haywood (Keke Palmer) são irmãos que precisam tocar o negócio da família depois da morte do pai em circunstâncias misteriosas. Os Haywood são descendentes diretos do jóquei (e o consideram a primeira estrela de cinema) e têm um rancho que cria cavalos dublês para produções de Hollywood. Enfrentando dificuldades financeiras depois da morte do pai, os irmãos também começam a perceber estranhos fenômenos no isolado rancho em que vivem. Depois de se convencerem que se trata de atividades alienígenas, eles decidem filmar os acontecimentos para vender as imagens para quem pagar melhor. E de quebra quem sabe entrar no showbiz.
Desde a primeira cena, Peele começa a construir o suspense que guiará o filme até seu último plano ao mostrar o ataque de um chimpanzé num estúdio de sitcom. Depois disso, acompanhamos a morte de OJ Haywood Sr. e alguns minutos depois, fenômenos assustadores no rancho da familia que levarão os irmãos a acreditarem na presença alienígena. O suspense é construído lentamente, o que pode aborrecer alguns espectadores, mas conduzido com maestria.
A ameaça desconhecida no lugar e a sequência inicial do chimpanzé nos dão pistas falsas, mesmo que estejamos vendo com nossos próprios olhos o desenrolar de tudo. E é aqui que o filme de Peele ultrapassa o bom encadeamento narrativo e de sensações, para elaborar o tema central do filme: o olhar.
O circuito (contra-)ideológico do longa é elaborado pensando em nossa relação com a mídia e, especialmente, com a imagem. O comentário que Peele vai construindo ultrapassa a crítica superficial que se poderia assumir, algo como “olhamos demais para as telas e estamos nos tornando fúteis em busca de fama”, e dispara diretamente à História da produção de imagens e como se tornaram ferramentas fundamentais para o prisma ideológico com o qual enxergamos o mundo.
Assim, não apenas as imagens, mas também os aparatos técnicos que as produzem, assumem posições políticas e posições nesse mercado do visível. Ao longo do filme nos deparamos com celulares, câmeras de circuitos de segurança, cinema digital, cinematógrafos manuais com película de celulóide, transmissões ao vivo, câmeras portáteis. Cada uma dessas ferramentas dá sua contribuição ao debate que o filme busca propor com suas características fundamentais em torno de um tema em comum.
Trailer
Ficha Técnica
Título original e ano: Nope, 2022. Direção e Roteiro: Jordan Peele. Elenco: Daniel Kaluuya, Keke Palmer, Steve Yeun, Brandon Perea, Michael Wincott, Wrenn Schmidt, Keith David, Devon Graye, Terry Notary, Barbie Ferreira. Gênero: Suspense. Nacionalidade: Estados Unidos da América. Trilha Sonora Original: Michael Abels. Fotografia: Hoyte van Hoytema. Figurino: Alex Boivard. Edição: Nicholas Monsour. Direção de Arte: Samantha Englender. Distribuição: Universal Pictures Brasil. Duração: 02h10min.
Não! Não Olhe! é daquele tipo de filme que te remete a vários outros, dependendo apenas das referências próprias de cada espectador para a criação desses diálogos. Como todo grande filme, este conversa com toda a História do Cinema e podemos citar desde Sangue de Pantera (Jacques Tourneur, 1942) e o poder da sugestão dentro do cinema, e ir passando por Spielberg, Shyamalan, Carpenter e até mesmo Bacurau (Kleber Mendonça Filho, 2019). Mas a comparação mais direta, e mesmo assim interessante, é com Janela Indiscreta (Alfred Hitchcock, 1954). O clássico longa de Hitchcock marcou o cinema ao provar, através de sua linguagem e narrativa, a natureza voyeurística da sétima arte.
Mas Peele se utiliza da contribuição de Hitchcock não para atualizá-las às tecnologias contemporâneas, mas para avançar a partir dali. Justamente por vivermos imersos em telas, a diferença não se dá apenas no tempo de exposição entre os quase 70 anos que separam os dois filmes. Para Peele, a imagem, ou melhor, o tipo de imagens que produzimos hoje, é como organizamos nosso pensamento e nossas relações, sejam elas pessoais, profissionais, de consumo, ou de mercado.
O consumo pelo olhar é uma figura bastante presente no longa, sendo problematizado e comparado à caça, à predação do Outro. São temas muito presentes nas obras de escritoras e teóricas como Laura Mulvey e Bell Hooks, trazendo para o cinema mainstream discussões há tempos negligenciadas e elaborando respostas ao olhar branco e masculino dominante e que muitas vezes objetifica ou espetaculariza outros corpos. Não! Não Olhe! é um filme negro, mesmo que sua narrativa seja menos explícita do que nos longas anteriores do diretor.
O capitalismo do espetáculo exige que a visualidade nos impressione para que continuemos a olhar. A partir disso, o suspense também nos entrega Jupe Park (Steven Yeun), o vizinho dos Haywood e um ex-ator mirim que agora tem um parque temático de faroeste. O círculo de influências mútuas entre os elementos que constroem o filme está completo. A ideia de espetáculo volta a suas origens norte-americanas com o parque de atrações fantásticas para toda a família com jogos, apresentações ao vivo e lanchonetes. Mesmo que a experiência nesse tipo de parque não seja necessariamente ligada a imagens, era nesse tipo de lugar que se podia encontrar os nickelodeons, cabines individuais para ver imagens em movimento, muitas vezes pornográficas, no fim do século XIX e início do XX.
Além disso, o tema faroeste é outra clara indicação à história do cinema norte-americano, sendo este um dos gêneros mais populares da fase clássica da produção do país. O herói do faroeste clássico é o homem durão que precisa enfrentar as adversidades, sejam elas naturais, humanas ou institucionais, de forma assertiva e destemida. Ou seja, mais um elemento constituinte do imaginário estadunidense (e quase global através da hegemonia cultural conquistada com o imperialismo) que Peele também se debruça para investigar.
Jordan Peele estreia seu terceiro longa-metragem com um fôlego impressionante e com a certeza do que pensa sobre o fazer cinematográfico. O uso do som é importantíssimo aqui para o suspense e a sensação de espacialidade que advém da narrativa e dos planos sensacionais compostos em parceria com o fotógrafo Hoyte van Hoytema. As atuações são impecáveis e o roteiro é brilhante. Não! Não Olhe! deixa bastante claro o amadurecimento do diretor desde sua estreia em Corra! não apenas na elaboração de seus argumentos a respeito de raça, da cultura americana e do próprio cinema, mas também na condução de todos os elementos que constituem um filme, do roteiro ao corte final. Jordan Peele deixa clara sua ousadia e liberdade sobre esses elementos e toma, no plano final, o Cinema inteiro para si. Para nós que somos negros.
25 de Agosto nos Cinemas
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