Paixões Recorrentes, de Ana Carolina



Ana Carolina é uma das mais importantes cineastas brasileiras, bastante influente no audiovisual especialmente nos anos 80. É também vista como autora feminista, retratando mulheres em situações limite que envolvem assassinatos e um caminhão de areia sobre a protagonista em Mar de Rosas (1978), ou sexo entre professores em Das Tripas Coração (1982). Em uma época ditada pela pornochanchada, era natural explorar os dramas humanos através do que nos faz humanos, nossos corpos e nossos desejos (pelos corpos) e nessa escola Ana Carolina traz uma perspectiva bastante particular e complexa sobre assuntos que não gostamos de tocar muito. São filmes que partem de cenários cotidianos e tensões pessoais comuns, mas retiram os limites do absurdo para evidenciar o que realmente pensam e querem todas aquelas personagens. Até onde as certezas destas últimas vão levá-las? A partir da rotina do dia a dia passam a refletir um cenário político e social. 

Nos anos 2000, retrata períodos históricos a partir da fabulação com filmes como Amélia (2000), que ela passou alguns anos tentando fomentar depois da crise no setor com o fim da Embrafilme no governo Collor e comenta sobre isto em sua participação no programa Roda Viva - Esta é uma ficção a partir da vinda de uma atriz francesa ao Brasil — e que Ana Carolina fez questão de não conhecer a biografia para o trabalho —; e houve também um filme sobre o poeta Gregório de Mattos (2003), situado no século XVII e rodado em formato digital.

Ao longo de uma carreira extensa, Ana Carolina viveu e filmou em diversos momentos que vivia o cinema nacional e as crises particulares de cada um deles. É importante voltar ao fato de que Gregório de Mattos, o que se passa num passado mais distante na filmografia, assume a textura da imagem digital não apenas no formato, mas em toda a concepção do longa. É uma proposta de lidar com as ferramentas — tecnológicas, institucionais, mercadológicas, estratégicas — que se apresentam e para produzir as ideias junto a elas. Se estabelece um diálogo entre o fazer cinematográfico e a realidade material da produção de conteúdo: quem financia, quem assiste, quem faz e a vivência concreta de um setor na sociedade brasileira.

Durante o Festival de Cannes de 1982, Wim Wenders gravou uma série de entrevistas com cineastas em que eles entravam sozinhos em um quarto e respondiam para uma câmera e um gravador a pergunta “Qual o futuro do cinema?”. Quarto 666 (1982) compila as respostas de profissionais de diferentes estilos e algumas nacionalidades (bom, pelo menos os que frequentam Cannes) e conta com nomes como Jean-Luc Godard, Steven Spielberg, Rainer Wesner Fassbinder e, claro, Ana Carolina.

Depoimento de Ana Carolina em ''Quarto 666'', 1982

Ao responder a pergunta sobre o futuro, além de dizer que tem vontade de parar de fazer cinema todos os dias, mas não consegue, a cineasta comenta rapidamente de “pequenas produções pra fazer pequenos filmes” e que não se interessa “absolutamente” pelo cinema eletrônico, aliás, não interessa ao “verdadeiro artista”. Olhando em retrospectiva, vendo que Ana Carolina nem parou de filmar, como assumiu (ou foi vencida pelo cansaço), o cinema eletrônico, digital, e suas novas formas de produção e distribuição. A resposta então soa visceral, como os filmes que fazia na época. Uma curiosidade insaciável em investigar alguns pormenores de quem somos, ou pelo menos de como ela enxerga.

Assim chegamos em Paixões Recorrentes (2022), drama que se passa na véspera do anúncio da II Guerra Mundial, em 1939. Um português chega esbaforido e sem bagagem em uma ilha perto do Rio de Janeiro atrás de seu amor, que havia fugido de Portugal. Lá, encontra um bar na praia gerido por Souza, um integralista frustrado, e os frequentadores do estabelecimento: uma atriz francesa, comunista e aristocrata, que veio ao Brasil em turnê, mas acaba sendo roubada pelo próprio agente, um brasileiro mais preocupado consigo mesmo do que qualquer outra coisa; um jovem rapaz negro e intelectual e também de certa forma cético a sua própria maneira; um argentino que se mete a ser o vigia do local e se assume como proletário, membro da classe trabalhadora; e a moça que o levou o português a ir cobrar o que achava de direito por amá-la.

Cena de ''Paixões Recorrentes'', de Ana Carolina (2022)

Apesar de se iniciar o drama por conta de um amor, as paixões de interesse no filme são as ideologias. Logo que conhecemos as personagens, a película abandona quase por completo a busca por amor do português e nos coloca para acompanhar o isolamento de cada um ali retratado. O que há de narrativo é ocupado pela relação entre a atriz e seu empresário, mas mesmo isso é secundário perante as associações entre todos e como expressam seus medos e desejos a partir de um posicionamento político (ou apolítico, como o empresário e, de certa forma, a portuguesa), na verdade, mais do que isso, uma ideologia.

Estar no campo do idealismo tira as personagens do mundo concreto, algo que pode ser visto tanto como sintoma quanto como refúgio. Cada uma à sua maneira, as personagens se alienam dentro de uma espécie de câmara desconectada do mundo real. Assim como na fase dos anos 80, pontos de partidas cotidianos, pelo menos no cinema, como um jovem em busca de uma amada escala rapidamente na direção de onde essas personagens gostariam de ir. O arco da atriz é que melhor reflete esse enlouquecimento que vem depois de uma cisão com a realidade concreta.

Mas dessa vez, diferente dos anos 80, o filme escolhe a apatia, não mais o escárnio, a violência, o sexo, a visceralidade como reflexo do ambiente absurdo. Talvez isso se dê pela produção de época que a autora vem fazendo nas décadas mais recentes e um outro olhar que isso trouxe. Ou talvez pelo próprio amadurecimento da cineasta pessoalmente, com outros interesses e questões que tinha antes, outras formas de reagir às próprias inquietações. Ou só para não se repetir mesmo.

Mas, de qualquer forma, essa apatia é o que transparece sobre o filme e isso diz algo sobre as questões que a cineasta abordou durante toda a carreira, sendo essa a intenção ou não. E aqui vemos uma expressão política através da estética muito mais direta, com diálogos sobre o integralismo, Lênin, o comunismo e o anarquismo, o passado que levou o país àquela praia em 1939. O tal cinema eletrônico citado por Ana Carolina no Quarto 666 reconfigura o olhar do espectador e produz novas formas de narrar, como ela previa — e talvez por isso se recusava a encarar na época.

Trailer


Ficha Técnica
Título original e ano: Paixões Recorrentes, 2022. Direção e Roteiro: Ana Carolina. Nacionalidade: Brasil. Gênero: Drama, Ficção. Elenco: Thérése Cremieux, Luciano Cáceres, Pedro Barreiro, Silvana Ivaldi, Danilo Grangheia, Iran Gomes e Luiz Octavio Moraes. Musica Especial: Maestro Marcelo Amalvi. Edição de Som: José Moreau Louzeiro, Ney Fernandes e Simone Petrillo. Som: José Moreau Louzeiro. Pós Produção de Som: Meios & Midia Comunicação. Mixagem: Breno Poubel. Fotografia: Luis Abramo. Arte e Figurino: Ana Carolina e Roberto Costa. Montagem: Mair Tavares. Pós Produção de Imagem: O2 PÓS. Produção: Ana Carolina. Produtor Executivo: Pimenta Jr. Supervisão Geral: André de Lima. Diretor de Produção: Johnny Catrolli.  Pós Produção: O2 Pós. Distribuição: O2 Play. 
Esse cinema, ou melhor, essa imagem que é digital, neoliberal, onipresente, veloz, é justamente por isso absolutamente direta e eficaz. Paixões Recorrentes assume a frontalidade do assunto e deixa o próprio filme dizer se isso é eficaz. A desconexão das personagens produz pessoas à deriva que eventualmente se esbarram fazendo muito barulho. Tudo é sentido demais e abafado pelo álcool e pela teorização do acontecimento.

Dessa forma, Ana Carolina nos entrega o que pensam aquelas pessoas de forma bastante direta, mas sob o esquema alienante que elas mesmas se impuseram, o caos só reflete marginalidade. Alheios, a política se mostra como anteparo para neuroses e ela, que parece central à primeira vista, na verdade se mostra apenas como tradução das identidades que se formam, uma em relação à outra naquele bar.

A velocidade contemporânea que exige irmos direto ao ponto para mais informações também tem como consequência uma apatia ao não conseguirmos incorporar nenhuma delas. E é a partir da imagem que consumimos grande parte desses estímulos. O sentimento de desalento político sentido em meio a uma eleição incomum, uma guerra na Europa e uma pandemia se mostra recorrente no debate político.

Paixões Recorrentes encena a véspera da Segunda Guerra. sem o afinco de fidelidade histórica que nunca a interessou, mas sem o anacronismo político comum ao cinema contemporâneo. O resultado tem desvios e tropeços, mas desde o início se propõe uma investigação. Uma fábula que assim permanece sem assumir lados, não por se isentar do debate, mas por fazê-lo acontecer com a força da ficção.

EM CARTAZ NOS CINEMAS DO RIO DE JANEIRO E SÃO PAULO

Escrito por Marisa Arraes

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