Vencedor do Prêmio de Melhor Roteiro na seção Um Certo Olhar do Festival de Cannes
A febre familiar do Mediterrâneo é um distúrbio hereditário que acomete pessoas de origem mediterrânea, como árabes e judeus, causado por um gene herdado de ambos os pais, caracterizado por dores abdominais, elevação de temperatura, ou menos frequentemente, dores no peito, articulações e erupções cutâneas.
O filme vencedor do Prêmio de Melhor Roteiro na seção Um Certo Olhar do Festival de Cannes, escrito e dirigido pela cineasta palestina, natural de Nazareth em Israel, Maha Haj, utiliza este título, não tanto pela doença propriamente dita, que é citada “en passant” na narrativa, mas como uma metáfora à dor psicológica presente nas personagens.
Começando pelo protagonista Walled (Amer Hlehel) um palestino, residente em Haifa, cidade portuária ao norte de Israel. O território de Haifa foi tomado à força por Israel, desde a criação do Estado,m em 1948. Essa crise sócio-política serve como pano de fundo para as crises existenciais da personagem. Apesar de bem casado com Ola (Anat Hadid), que sustenta a família, e pai de dois filhos, Walled carrega dentro de si um vazio existencial profundo. Sua tristeza e insatisfação são demonstradas em alguns diálogos onde ele expressa seu desgosto pela ocupação. Mas, com certeza, essa é apenas a ponta do iceberg de uma depressão crônica e profunda, carregada por pensamentos sombrios e destrutivos, melancolia e desânimo.
Com a desculpa de que “está escrevendo um livro policial” que nunca saiu das primeiras linhas, o homem passa os dias trancado em casa, se esforçando para fazer algumas tarefas domésticas e cuidar dos filhos. Walled se mostra um pai atento e amoroso a ponto de perceber que as dores de barriga recorrentes do filho, geralmente às terças feiras, não são sintomas da febre do Mediterrâneo, mas sim expressões de uma questão psicológica ligada a um certo professor. A filha mais velha, entretanto, fica um pouco em segundo plano nos cuidados.
Ficha Técnica
Título original e ano: Mediterranean Fever, 2022. Direção e Roteiro: Maha Haj. Elenco: Amer Hlehel, Ashraf Farah, Anat Hadid, Samir Elias, Cynthia Saleem, Shaden Kanboura. Gênero: Drama. Nacionalidade: Palestina, Alemanha, França, Chipre, Qatar. Trilha Sonora Original: Munder Odeh. Fotografia: Antoine Héberlé. Edição: Véronique Lange. Produtoras: Majdal Films, Pallas Film, Still Moving, Amp Filmworks. Produção: Baher Aghbariya, Thanassis Karathanos, Martin Hampel, Juliette Lepoutre, Pierre Menahem, Marios Piperides, Janine Teerling. Duração: 108min. Classificação Indicativa: 14 anos.
A vida vazia e sem perspectiva de mudanças toma um outro rumo com a chegada de um novo vizinho no apartamento da frente. Jalal (Ashraf Farah) é um trambiqueiro, criminoso, que ouve música alta, desfruta de prazeres duvidosos e tem uma alta dívida com o submundo.
“Que lindo dia. Não sei se tomo um chá ou se me enforco!”
Apesar de terem personalidades totalmente distintas, uma curiosa amizade nasce entre eles. Cada qual enfrentando seus fantasmas e crises pessoais, passam a se apoiar, criando um vínculo perigoso.
Amizade e depressão permeiam toda narrativa, que se vale de momentos e situações cômicas para atingir o ponto crucial da trama.
Devemos destacar a bela fotografia com imagens da orla vistas da janela do apartamento. Exatamente por isso o imovel vizinho é alvo de constantes mudanças de inquilinos. Atente para este detalhe. As ótimas atuações da dupla Amer Hlehel e Ashraf Farah entregam bons momentos e personagens fortes e cativantes.
Febre do Mediterrâneo é, sem sombra de dúvidas, uma grata surpresa da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O longa é a indicação da Palestina para categoria de filme internacional do Oscar 2023.
Filme Vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes deste ano
Esta coprodução da Suécia, França, Grécia e Dinamarca é um tapa nas fuças da humanidade. Não poupa ninguém, nem ricos, poderosos e belos, nem feios, pobres e subalternos. Nós somos reis da merda, parafraseando um simpático personagem do filme, um ricaço russo capitalista. Esses detalhes escatológicos, merda, vômitos, sujeira, abundam a película, em sequências de fazer gargalhar. Essa sátira escancarada é tão impactante, que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes 2022.
O diretor sueco Ruben Östlund estrutura seu filme de duas horas e meia em três atos. Em cada cenário, ele se diverte em desprezar o gênero humano com um roteiro hilário, fazendo-nos dar muitas risadas nervosas em suas discussões de poder, gênero e classes. Interessante observar como, entre as piadas, nossa contemporaneidade é discutida com muita verve e sarcasmo, nossas fotos instagramáveis, nossas citações de assuntos importantes retiradas do google, nosso verniz de civilização deturpado pela lei da selva, tudo é colocado em seu verdadeiro contexto, sem firulas nem meias verdades.
No primeiro ato, temos um casal de modelos. O rapaz Carl (Harris Dickinson) e a moça Yaya (Charlbi Dean) tem um complicado relacionamento porque ela ganha muito mais que ele. Eles se embrenham em discussões de gênero porque o bonitão insiste em que eles tem que ser iguais no relacionamento, para desagrado da namorada. Entre passarelas, castings, restaurantes e hotéis de luxo, suas vidas de posts de ''instagram'' são manchadas pelas discussões. O mundo da moda é exposto na sua versão mais ridícula.
Ficha Técnica
Título original e ano: Triangle of Sadness, 2022. Direção e Roteiro: Ruben Ostlund. Elenco: Harris Dickinson, Charlbi Dean, Woody Harrelson, Vicki Berlin, Henrik Dorsin, Zlatko Burić. Nacionalidade: Suécia, França, Grécia, Dinamarca. Gênero: Comédia, Drama. Trilha Sonora Original: Fredrik Wenzel. Edição: Mikel Cee Karlsson e Ruben Östlund. Direção de Arte: Gabriel de Knoop e Daphe Koutra. Design de Produção: Josefin Åsberg. Figurino: Sofie Krunegård. Duração: 142min.
A odisséia por este mundo dos ricos e belos continua agora num cruzeiro de luxo. O casal belíssimo foi convidado para viagem por seu alcance nas redes sociais. Nesse navio encontramos os verdadeiros milionários, de várias nacionalidades, suas birras e seus caprichos. O rico mais desbocado é o russo Dimitry (Zlatko Burić), o autointitulado rei da merda, fabricante de fertilizantes agrícolas, um capitalista ferrenho. Para se contrapor a ele, temos o Capitão do navio, personagem de Woody Harrelson, um imprestável bêbado que é marxista e que, se não fosse pelo trabalho da imediata Paula (Vicki Berlin), não conseguiria fazer o navio de cruzeiro funcionar. Entre diversas diatribes, o cruzeiro passa por uma noite dos infernos, onde uma tempestade marítima interrompe o jantar de recepção do capitão. Prepare-se para uma orgia de acontecimentos insanos, clara garantia de gargalhadas, os ricos também sofrem. Até que o amanhecer chega, a tempestade passa e um ataque de piratas, afundando a embarcação se dá. Desgraça pouca é bobagem!
Pulamos para o terceiro ato. Agora tudo mudou, poucos sobreviventes chegaram a uma ilha deserta, e agora as relações de poder e gênero mudaram, os poderosos agora não são mais os ricos e bonitos, e sim quem consegue pescar e trazer alimentos. O nosso casal belíssimo, como se adaptará a essas novas condições? Soltando alguns spoilers, eles sobrevivem. As relações se alteram, mas sempre há os que insistem e não desistem da vida.
O filme é excelente, um tapa na nossa cara, para fazer-nos realmente pensar nas nossas relações pré-concebidas de poder, dinheiro e beleza. É aquele tipo de sátira que não poupa ninguém e é magnífica exatamente por conta deste fator, por nos desnudar e nos fazer refletir sobre nossa convivência e relações.
Ainda o “Fora Temer!”, ou as rasteiras da História estão cada vez mais violentas!
Não foram poucos os cineastas que atreveram-se a filmar a famosa tragédia shakespeariana sobre os dilemas existenciais de Hamleto, o jovem príncipe da Dinamarca: a maioria (Laurence Olivier, Franco Zeffirelli, Kenneth Branagh) seguiu o percurso da adaptação clássica, enquanto outros (como o outrora promissor Michael Almereyda, por exemplo) optaram por versões heterodoxas. Em todos os casos, interessava o modo como essa peça fazia despertar o imperativo da ação, “que movimenta a narrativa”, conforme faz questão de explicar o ator Marcelo Restori ao seu filho adolescente Fredericco, no filme ora resenhado.
Filmado durante as ocupações estudantis que eclodiram no ano 2016 – quanto também aconteceu o ‘impeachment’ da ex-presidenta Dilma Rouseff –, “Hamlet” (2022, de Zeca Brito) funde estratégias de ficção em seu entrecho documental: o protagonista, vivido pelo supracitado Fredericco Restori, reluta em assumir-se como líder de uma das células estudantis mostradas no filme. Defendendo insistentemente a lógica da horizontalidade de reivindicações, a modéstia do personagem é confrontada pelas escolhas de ênfase actancial do filme em si, que acompanha muitas de suas (in)decisões. Num momento-chave, ele questiona a relevância do célebre monólogo sobre o “ser ou não ser” com seu pai, que aparece como uma extensão conscienciosa. Ele é incitado a agir (e/ou atuar), portanto.
Antes que Fredericco esforce-se para solicitar algo à própria Dilma Rousseff, que participava de um comício no Rio Grande do Sul, uma das reflexões iniciais do mentor Marcelo dissolve-se na maneira como o filme é elaborado: segundo ele, na trama de William Shakespeare [1564-1616], todos os personagens são normados, exceto os atores que protagonizam uma peça dentro da peça, fundamental para que algumas situações sejam compreendidas enquanto “espelho” de atitudes decisivas. Ao longo do filme, porém, não ouvimos os nomes dos partícipes das ocupações dos espaços escolares. Todos têm direito à voz, nem que sejam como colaboradores dos jograis que permitem um maior alcance sonoro das pautas compartilhadas pelos discentes.
Ficha Técnica
Título original e ano: Jamlet, 2022. Direção: Zeca Brito. Roteiro: Frederico Ruas e Zeca Brito. Elenco:Fredericco Restori, Jean-Claude Bernardet e Marcelo Restori. Participação especial: Dilma Rousseff. Gênero: Híbrido de Ficção e Documentário. Nacionalidade: Brasil. Trilha sonora original: Rita Zart. Desenho de som e Mixagem:Tiago Bello. Supervisão de pós-produção: Tyrell Spencer. Montagem: Jardel Machado Hermes. Fotografia: Bruno Polidoro, Joba Migliorin, Lívia Pasqual e Zeca Brito. Produção executiva: Clarissa Virmond, Frederico Ruas, Tyrell Spencer e Zeca Brito. Empresa Produtora: Anti Filmes. Coprodutora:Galo de Briga Filmes. Duração: 87 min. P&B. Duração: 87 min. P&B.
Fotografado num preto-e-branco ostensivamente granulado, este filme é prejudicado pelas contingências políticas da realidade, no sentido de que o bolsonarismo demonstrou-se muito mais vilanaz que as perseguições, censuras e cortes de verbas ocorridos no governo ilegítimo do golpista Marcelo Temer. Conforme ocorreu noutros Estados, em insurreições similares, os estudantes são chamados de “vagabundos”, hostilizados pelos agentes terceirizados do poder público e ignorados quanto tentavam dialogar diretamente com o Secretário de Educação e outras autoridades. Numa palestra inserida como chamariz espectatorial, o crítico de cinema Jean-Claude Bernardet afirma que a consideração de que o aprendizado escolar determina irrestritamente as escolhas do cidadão seria uma continuidade do pensamento conservador. A rejeição dos currículos escolares tendenciosamente pré-definidos permanece urgente enquanto estímulo à renovação pensamental. Pena que, de 2016 para cá, tudo piorou em escala avassaladora...
Num esforço por situar esse filme na época em que foi realizado, acrescentamos que “Hamlet” oferece um bem-vindo contraponto sulista a obras que fizeram sucesso ao conferirem um necessário protagonismo aos alunos secundaristas, como “Espero Tua (Re)Volta” (2019, de Eliza Capai) ou “Selvagem” (2019, de Diego da Costa), além do petardo nordestino “Cabeça de Nêgo” (2020, de Déo Cardoso). Estas produções beneficiaram-se de uma certa contemporaneidade em relação aos seus lançamentos e os eventos reconstituídos, enquanto “Hamlet” soa um tanto anacrônico no período em que foi concluído, visto que a ascensão do atual presidente, lamentavelmente candidato à reeleição, demonstra um retrocesso nacional acerca do que era reclamado pelos estudantes, dotando o desfecho do filme de um julgamento que reforça a impotência do protagonista. Afinal, quando exortado a agir – depois que, metalingüisticamente, aceita a sanha de personagem central –, o que Fredericco faz é entregar um documento a uma representante executiva deposta de seu cargo. Será que ele não entendeu bem o que o seu pai falou? Ou o que o crítico disse, em seguida? Sua imaturidade etária talvez não sirva como justificativa.
Dentre os bons momentos do filme, convém destacar uma situação muito interessante de embate midiático, em que uma repórter da TV Record é confrontada, numa transmissão ao vivo, por um fotógrafo imiscuído em meio aos estudantes revoltosos. Durante os gritos de protesto, havia quem se preocupasse com o mau uso de palavrões. Não obstante seus bons intentos e sua abnegação militante, Fredericco não é suficientemente dotado de carisma para comparar-se ao Hamleto shakespeariano. Cabe-lhe seguir em frente com algumas acrobacias, apresentadas como ‘flashforwards’ durante a projeção. Contrariando o que ocorre ao final da peça que serviu de inspiração, que o silêncio não se instale como único “resto” possível!
Em uma cidade do interior gaúcho, um jovem vaqueiro que vive com a família descobre que ficou sem emprego do dia para a noite quando a fazenda em que trabalhava é vendida para virar uma plantação de eucaliptos. Seu pai já idoso não reage bem à notícia e falece naquela mesma noite. Sentindo-se culpado, o protagonista decide fazer uma viagem a cavalo até o Rio de Janeiro para cumprir o último desejo de seu pai: deixar na escada do Palácio do Catete uma foto deste com Getúlio Vargas, seu ídolo. Uma espécie de penitência e jornada de descoberta.
A partir daí, o filme acompanha a trajetória de Leo (Miguel Coelho) até a cidade onde deve cumprir sua missão. Artur (Thiago Lacerda), o irmão consideravelmente mais jovem do falecido que também morava com ele, decide ir junto. A princípio, Leo rejeita a companhia. Sua opinião sobre o tio é a mesma que tinha seu pai: um solteirão vagabundo, beberrão que só traz problemas.
No entanto, o destino obriga o garoto a aceitá-lo ao seu lado quando sua montaria lesiona a pata pouco após a partida e Artur o socorre, oferecendo o próprio cavalo para que os dois sigam viagem sobre o animal. Um dos grandes méritos do filme se dá nas cenas externas, quando a direção aproveita para ressaltar a beleza da paisagem através dos enquadramentos, que também discorrem bem sobre a psique dos personagens.
Ficha Técnica
Título original e ano: Além de Nós, 2022. Direção: Rogério Rodrigues. Roteiro: Ulisses da Motta, Romir Rodrigues e Rogério Rodrigues. Elenco: Miguel Coelho, Thiago Lacerda, Clemente Viscaíno, Ida Celina, Naruna Costa, Néstor Monasteiro . Gênero: Drama,. Nacionalidade: brasileira. Fotografia: Renato Falcão. Direção de Arte: Rose França. Edição: Vicente Moreno. Produção: Atama Filmes. Duração: 103min.
Assim, a narrativa segue como uma típica jornada do herói. Após o chamado da aventura e o encontro com o mentor, vêm a travessia do primeiro limiar, os aliados e inimigos, as provações e a recompensa. Durante todo o trajeto, Leo se mostra um jovem compromissado, mas sem perspectiva. Obstinado a realizar o único objetivo concreto que tem na vida. Já Artur é o fanfarrão que quer curtir os prazeres da vida independente das circunstâncias. Enquanto para o primeiro a viagem é apenas um caminho a ser percorrido, para o outro o que importa é a experiência.
Esse contraste obviamente traz uma série de conflitos. O que deixa a desejar é que ao fim do longa-metragem, a consolidação do amor e admiração entre tio e sobrinho demonstrada na sequência final dá-se apenas por um longo tempo de convivência, visto que a dinâmica entre os dois não é alterada em nenhum momento. Mesmo quando Artur salva a vida de Leo, isto se dá numa situação específica de risco de morte que não implica mudança no comportamento de nenhum dos dois.
Um dos grandes problemas da obra se dá porque a interação dos atores principais tem uma harmonia que faz falta ao restante do elenco. Os personagens encontrados ao longo do caminho, com exceção de dois exemplos, têm interpretações que deixam a desejar e não são ajudadas pelos diálogos fracos. Isso causa um estranhamento enorme devido à falta de unidade no tom de atuação. Além disso, estes coadjuvantes constantemente são mal construídos e alguns inclusive são destituídos de função dramática.
No fim das contas, Além de Nós parece ser um roteiro com um bom argumento e um futuro promissor, mas que carece de mais tratamentos. Ou também um bom roteiro, mas que foi mexido demais por muitas mãos e se perdeu no caminho.