Argentina 1985, de Santiago Mitre | Assista no Amazon Prime Video

 
Vocês estão indo muito bem, mas não digam que vão bem, senão a merda aumenta muito mais”!

Vencedor do importante Prêmio da Crítica no Festival de Veneza, este filme consolida uma impressão consensual em relação ao cinema argentino, a de que esta filmografia nacional é uma das melhores e mais coerentes do mundo, atualmente. Neste sentido, é mui aplaudível a habilidade com que os realizadores deste país abordam a interferência de aspectos políticos, históricos e/ou socioeconômicos no cotidiano dos personagens, inclusive em gêneros tradicionais, como as comédias românticas. À guisa de exemplo, mencionamos “Plata Quemada” (2000, de Marcelo Piñeyro), “O Filho da Noiva” (2001, de Juan José Campanella) e “Medianeras: Bueno Aires na Era do Amor Virtual” (2011, de Gustavo Taretto). Cada qual à sua maneira, eles obedecem a convenções típicas de gênero, mas sem desconsiderar a relevância dos aspectos supracitados.

Neste exemplar mais recente, escolhido como representante argentino a uma possível indicação ao Oscar, estamos diante de um enredo ostensivamente político, sobre “o julgamento mais importante desde Nuremberg”, conforme menciona o protagonista, em determinado momento. A comparação procede, já que foi a primeira vez que um tribunal civil pôde julgar criminosos de patente militar por crimes cometidos durante o período ditatorial. Em razão disso, o promotor Julio Strassera (Ricardo Darín) tem ciência da delicada responsabilidade que fica a seu cargo. Idem quanto às consequências preocupantes dessa decisão, como as ameaças recorrentes que são feitas à sua família.

A trama inicia-se em 1984, quando a restauração democrática no país possibilitou reuniões advocatícias que coletaram provas dos crimes cometidos pelos militares, que governaram ditatorialmente por sete anos, entre 1976 e 1983. À frente de uma missão tão decisiva, Julio torna-se um tanto paranóico, pois sabe que será bastante perseguido, tanto pelos réus quanto pela opinião pública, que investigará os seus atos públicos durante o período investigado. Casado com Silvia (Alejandra Flechner), com quem compartilha os pensamentos esquerdistas, ele possui dois filhos: uma adolescente, Verónica (Gina Mastronicola), que talvez esteja namorando um infiltrado; e Javier (Santiago Armas Estevarena), um garoto que é convencido pelo pai a seguir a própria irmã e que, a posteriori, testemunhará privilegiadamente as reações faciais dos juízes às sentenças concernentes ao julgamento apresentado no filme.

Trailer

Ficha Técnica
Título original e ano: Argentina, 1985. Direção: Santiago Mitre. Roteiro: Mariano Llinás, Martín Mauregui, Santiago Mitre. Elenco: Ricardo Darín, Gina Mastronicola, Francisco Bertín, Santiago Armas Estevarena, Alejandra Flechner, Paula Ransenberg, Gabriel Fernández, Ricardo Truppel, Ignacio Francavilla, Walter Jakob. Gênero: Biografia, Crime, Drama. Nacionalidade: Argentina. Trilha Sonora Original: Pedro Osuna. Fotografia: Javier Julia. Edição: Andrés P. Estrada. Direção de Arte: Micaela Saiegh. Figurino: Mónica Toschi.  Disponível no Amazon Prime Video Brasil. Duração: 02h20min. 
Malgrado submeter-se, vez por outra, ao percurso típico dos filmes de tribunal, o diretor Santiago Mitre não oblitera os seus interesses discursivos, retratando elaboradamente os eventos reais que ele enfatiza, sobretudo no que diz respeito ao modo como foi escolhida a equipe de Julio, composta por jovens advogados. O motivo é diegeticamente bem explicado – o fato de os juristas mais velhos deixarem-se seduzir pelo pensamento fascista – mas concatena-se com um traço peculiar que atravessa os filmes anteriores do cineasta, que ficou internacionalmente conhecido a partir de “O Estudante” (2011): a exaltação ideológica dos fervores ativistas da juventude.

O roteiro, co-escrito por Mariano Llinás e Martín Mauregui, merece elogios pela assertividade no cuidado com o triunfalismo precoce de quem percebe que está vencendo as etapas iniciais de algum processo, frente à constatação de que se está diante de uma luta continuada. A conversa que Julio Strassera tem com seu mentor, um advogado mais velho, que padece de um câncer terminal (Norman Briski), é deveras elucidativa, visto que ele chama a atenção para a responsabilidade ampliada deste julgamento enquanto algo inaudito, em âmbito jurisprudencial. Ao longo de toda a trama, repete-se que “quem ladra, não morde”, a fim de justificar a ousadia dos personagens perante as ameaças constantes, demonstradas como blefes, exceto por um automóvel que explode nas cercanias do tribunal.
Créditos: ©Amazon Studios    
Peter Lanzani e Ricardo Darín em Argentina, 1985

Como era esperado, a trilha musical tende ao acompanhamento reiterativo, mas há o uso de tangos e ‘rock’n’roll’ portenho como componentes identitários que, mais uma vez, reforçam a pertinência dos atos das novas gerações no enfrentamento ao tradicionalismo introjetado de quem viveu sob a ditadura. A cena em que o colega adjunto de Julio, Luis Moreno Ocampo (Juan Pedro Lanzani), recebe a ligação de sua mãe, é fundamental no tipo de reflexo que o diretor deseja incutir em sua platéia.

Por mais concessivo que “Argentina, 1985” seja, na comparação com os trabalhos prévios do cineasta, bem mais austeros, não há dúvidas que assistimos a um dos grandes filmes do ano. Na conjuntura espectatorial brasileira hodierna, que acaba de ser submetida a um violento pleito eleitoral, este filme é uma conclamação pragmática às ferramentas democráticas, com vistas à conscientização nacional: os crimes dos ditadores e militares, mais que serem conhecidos, precisam ser criminalizados e responsabilizados judicialmente. E, ainda que as condenações dos mesmos sejam insatisfatórias, em razão de seu poderio institucional, é necessário continuar denunciando seus malfeitos, na práxis diuturna. Tudo é político, afinal. Vide a frase pronunciada por um juiz quando flagra Javier, a quem chama de Strassera Jr., observando à reunião informal de magistrados, numa pizzaria: “espiões não chupam pirulitos”!

O segundo trabalho de Darín e Mitre está disponível no Amazon Prime Video. A dupla esteve junta anteriormente em ''A Cordilheira'' (2017).

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Escrito por Wesley Pereira de Castro

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