“Há muitos rótulos hoje em dia (‘gay’, ‘bi’, ‘queer’, ‘trans’), mas apenas dois importam: predador e presa. E eu sei o que sou!”
Ao lermos a sinopse de O Acampamento, de John Logan, o cultuado slasher movie “Acampamento Sinistro”, de Robert Hiltzik (1983), vem à cabeça, por conta da surpreendente revelação do desfecho. Entretanto, ainda que admita inspirar-se no clássico do suspense “Sexta-Feira 13”, de Sean S. Cunningham, que fora lançado nos anos 80, as intenções do roteirista, estreando na direção, são muito mais ambiciosas que uma mera revitalização do subgênero de terror em que adolescentes são assassinados sobretudo quando ousam fazer sexo. O que ele realiza em “They/Them – O Acampamento” é deveras elaborado.
Responsável pelos roteiros de filmes tão distintos quanto “Gladiador”, de Ridley Scott (2000) e “007 – Operação Skyfall”, de Sam Mendes (2012), John Logan já foi indicado ao Oscar um trio de vezes e é assumidamente homossexual. Estas informações explicam tanto a perspectiva respeitável do enredo quanto a abordagem das questões de gênero e sexualidade no filme, que merecem ser elogiadas por seu caráter “contrabandista”. Ou seja, o longa funcionará para quem busca apenas uma diversão rápida em que pessoas são mortas de maneira aparentemente aleatória, mas será muito mais efetivo para quem se identifica com os dilemas dos personagens e/ou para quem compreende o cabedal de entrelinhas contidos nos diálogos.
Há um detalhe genial revelado desde o título: o símbolo “/”, em inglês, é ‘slash’, não por acaso a mesma palavra que, em sua forma verbal, designa o ato de golpear alguém. Como tal esse verbo deu origem à expressão ‘slasher movie’, quando há um assassino impiedoso perseguindo outrem. Os pronomes pessoais também contidos no título original (“they” e “them”) correspondem à maneira que os falantes anglofílicos referem-se às pessoas não-binárias, ou seja, que evitam definir-se como exclusivamente masculinas ou femininas. Na produção, uma das personagens opta por esta caracterização, Jordan (Theo Germaine), que, em mais de um sentido, converte-se em protagonista.
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Cooper Koch como Stu, Anna Lore vive Kim, Monique Kim é Veronica, Quei Tann interpreteta Alexandra, Austin Crute vive Toby, Darwin del Fabro é Gabriel eTheo Germaine é Jordan.
Após o assassinato inicial, somos apresentados ao instrutor Owen Wheeler (Kevin Bacon), que gerencia um acampamento para redefinição comportamental de adolescentes maltratados por suas famílias por serem homossexuais. No discurso de apresentação, ele apregoa o respeito à inclusão e assegura que não imporá os dogmas bíblicos para os jovens, mas os obriga a dividirem-se em meninos e meninas, o que causa um desconforto inicial em Jordan, por causa de sua orientação de gênero bastante específica. Isso fica ainda mais complicado quando se descobre outra pessoa transexual entre os internos.
Divulgação Telecine
Ficha Técnica
Título original: They/Them, 2022. Direção e Roteiro: John Logan. Elenco: Kevin Bacon, Anna Chlumsky, Cooper Koch, Anna Lore, Steven Anthony Washington, Monique Kim, Quei Tann, Austin Crute, Darwin del Fabro, Theo Germaine, Boone Platt, Mark Ashworth, Sofía Palmero. Gênero: Terror, Slasher. Nacionalidade: Eua. Trilha Sonora Original: Drum & Lace. Fotografia: Lyn Moncrief. Edição: Tad Dennis. Design de Produção: Cece Destefano. Figurino: Rebecca Gregg. Produtora: Blumhouse Productions. Disponível na plataforma Peacock (EUA) e Telecine (Brasil). Duração: 01h44min.
Defendidos por um elenco muito competente, os personagens adolescentes vinculam-se aos estereótipos verossímeis das gerações atuais: o atleta gostosão, que quer ser heterossexualizado, pois “não sabe para onde olhar nos vestiários” (Cooper Koch); o talentoso porém afetado amante dos musicais da Broadway (Austin Crute); a lésbica mal-humorada porém decidida (Monique Kim); a patricinha que deseja “dar um neto para os pais” (Anna Lore); uma moçoila que prefere tomar banho sozinha (Quei Tann); e um rapaz misterioso de aparência andrógina (Darwin del Fabro). Cada um deles atende a reivindicações emocionais do público LGBTQIA+, sendo fascinante a cena em que todos cantarolam “Fucking Perfect”, da cantora P!nk.
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Para quem não lembra da canção, o refrão diz mais ou menos o seguinte: “por favor, por favorzinho, nunca se sinta como se fosse menos do que perfeita pra caralho”, o que faz muito sentido dentro da lógica opressora do acampamento, em que a única voz lúcida e acolhedora é a da terapeuta Molly (Anna Chlumsky, num ótimo retorno às telas). Nos demais momentos, os garotos precisam lidar com situações aflitivas, como quando as meninas são obrigadas a preparar tortas, enquanto os meninos precisam segurar metralhadoras. A situação envolvendo a exigência de disparar contra um cachorro é uma das mais atordoantes do filme, que demora a revelar a convenção dos assassinatos em série – e existe um motivo mui pertinente para isso!
Esse é o momento em que paramos de falar sobre a trama e recomendamos efusivamente este filme, que embaralha os cacoetes do subgênero de maneira original e pertinente. Os personagens são respeitados em suas sexualidades “desviadas” e, como tal, o espectador também o é. O roteiro é autoconsciente acerca de suas estratégias de ressignificação, tanto que, antes de fazer sexo com uma companheira, uma garota olha para as árvores e exclama: “até parece que Jason [Voorhes] sairá dali a qualquer momento!”. Estranhamente, o imitador dele não aparece nesse instante, e vocês precisarão ver o filme para descobrir o porquê. Muito, muito bom!
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