“O Direito não precisa entender o que realmente aconteceu,
mas encontrar uma solução justa”
Na seqüência de abertura deste filme tão polêmico quanto premiado, fica evidente que a diretora Júlia Murat evitará as concessões moralistas. Ou melhor, as questionará junto à progressiva adesão do público aos dilemas que perpassam o cotidiano da jovem Simone, que, prestes a iniciar uma carreira como Defensora Pública, mantém uma trajetória paralela enquanto alguém que se masturba por dinheiro, na Internet. E a entrega da atriz Sol Miranda à sua personagem é definitiva neste processo, no sentido de que traz à tona contradições abundantes tanto em ambientes universitários quanto nas redes sociais com tendências à difusão de idéias de esquerda…
Pela manhã, Simone questiona as teorias advocatícias, geralmente ministradas por pessoas brancas e privilegiadas, mas defensoras da igualdade possível de direitos, entre todas as raças, gêneros e classes sociais. A turma é diversificada, de modo que os debates em sala de aula são metonímicos em relação ao público que o filme deseja atingir. Na prática, o que se defende é a constatação de que as teses gnoseológicas são defendidas por pessoas reais, com problemas e desejos reais, convertidos em anseios individualizados. À noite, entretanto, Simone despe-se diante da câmera de seu computador, a fim de obter recompensas em criptomoedas. Até que é instigada a conhecer as fronteiras do sadomasoquismo – e parece gostar do que experimenta, para além de qualquer temor!
Inicialmente, o roteiro co-escrito pela própria diretora, ao lado de Gabriela Capello, Roberto Winder, Rafael Lessa e Ananda Radhinika, coteja a satisfação que Simone obtém de suas sessões fetichistas com os depoimentos angustiantes que ouve em seu trabalho, onde lida com situações freqüentes de opressão contra as mulheres. Sem recair em binarismos julgamentais, a protagonista constata que os agressores são demarcados por históricos pessoais de violência, de modo que eles a praticam como uma maneira assustada de autoafirmação. Tal qual reiterado por um colega de Simone, “da mesma maneira que a violência é ensinada, algo mais pode ser lecionado que a substitua”. É um filme que nos leva a refletir sobre as condições fundamentais do Direito, portanto.
Trailer
Ficha Técnica
Título original e ano: Regra 34, 2022. Direção: Julia Murat. Roteiro: Julia Murat, Gabriela Capello, Roberto Winder, Rafael Lessa e Ananda Radhinika. Consultores: Yasmin Thainá, Pedro Abramovay, Lillah Halla. Elenco: Sol Miranda, Lucas Andrade, Lorena Comparato, Isabella Mariotto, Babu Santanta, MC Carol, Rodrigo Bolzan, Dani Ornellas. Gênero: Drama. Nacionalidade: Brasil. Trilha Sonora Original: Lucas Marcier e Maria Beraldo. Fotografia: Leo Bittencourt. Edição: Julia Murat, Beatriz Pomar e Mair Tavares. Figurino: Diana Leste. Distribuição: Imovision. Duração: 01h40min.
Os problemas tornam-se mais evidentes à medida que Simone constata que as mulheres que ousam denunciar as agressões simbólicas de seus companheiros são fisicamente espancadas e, paralelamente, ela fica mais e mais atraída pela correlação entre prazer sexual e dor autoinfligida. Tendo dois amigos como cúmplices eróticos, Coyote (Lucas Andrade) e Lúcia (Lorena Comparato), Simone resolve aceitar a proposta de um seguidor, que oferece-lhe bastante dinheiro, a fim de que ela aceite exibir-se em situações violentas. E, nesse ponto, ela ignora a principal regra de qualquer relacionamento, que é o estabelecimento de confiança entre ambas as partes. O que acontece, a partir de então? No desfecho, o filme parece aderir ao punitivismo que foi refutado ao longo dos debates anteriores. Quando Simone reclama, de maneira rude, para sua melhor amiga, que lamenta que “o seu tesão não seja suficientemente político” para as demais pessoas, o roteiro interrompe a construção dialética anterior e rende-se a uma subtrama de suspense que desemboca num desfecho aberto porém imediatamente decepcionante. O que está sendo tematizado, afinal?
O fato de este filme ser dirigido por uma mulher, além de a protogonista ser negra e de o seu melhor amigo ser bissexual, explicita a habilidade do mesmo no enfrentamento das questões identitárias, em voga na contemporaneidade. Permite que alguns coadjuvantes (MC Carol e Babu Santana, sobretudo) componham personagens densos, longe dos estereótipos ditados pela mídia associada ao racismo (e ao machismo) estrutural. Trata-se de uma trama que assimila os lugares-comuns discursivos, optando por problematizá-los, como quando Simone enfrenta a opinião de uma colega de turma, que alega ser “contra a prostituição, mas em favor da prostituta”. É possível que essa distinção condenatória aconteça? Eis o tipo de discussão que torna este filme bastante rico e sobremaneira oportuno!
Créditos: Divulgação
O filme foi vencedor Vencedor do Leopardo de Ouro no 75º Festival Internacional de Cinema de Locarno e também fez parte da Seleção Oficial Première Brasil Festival do Rio 2022 Seleção Oficial 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
Ainda que evite as menções partidárias, podemos perceber, nos diálogos, várias situações que denotam o rechaço ao bolsonarismo, principalmente quando um estratagema judicial da investigação que ficou conhecida como Lava-Jato é debatida pelos defensores públicos. Além disso, a composição dramática acolhe um formato que emula a independência, visto que sabemos pouco sobre o passado de Simone, mas compreendemos o seu presente, através de referências identificáveis em termos de licenciosidade (Milo Manara e Rodrigo Gerace, entre eles) e uma seleção cancional que inclui nomes como Liniker e os Caramelows e Johnny Hooker. Aliás, “Truco”, canção que é executada em mais de uma oportunidade, funcionando como tema específico da personagem principal. Vale a pena acrescentar que esta canção é composta e interpretada por Maria Beraldo, em parceria com Lucas Marcier, que são justamente os responsáveis pela trilha musical do filme.
Na maior parte de seus quase cem minutos de duração, “Regra 34” é um filme que propõe um olhar ampliado sobre a própria expressão contida em seu título, que tem a ver com a reprodução de conteúdos pornográficos, através de elementos que não são considerados sequer eróticos, noutros contextos. Pena que, quando “Cachorrinho” – canção ‘pop’ que ficou famosa na voz de Kelly Key – surge na banda sonora, a protagonista sucumbe à obviedade deste recurso associativo e imerge nos perigos do sexo pago de maneira absurdamente ingênua. Porém, o que está sendo proferido aqui é um julgamento de valor atrelado aos pressupostos (des)apreciativos de quem está escrevendo esta resenha. O grande mérito da produção é a sua ampliação discursiva. Conversemos sobre ele, publicamente: tem tudo a ver com o que está acontecendo no Brasil polarizado de hoje em dia!
19 de Janeiro nos Cinemas
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