A ótima montagem do filme, a cargo de André Sampaio, concede suficiente participação aos mais diversificados personagens, de modo que alguns deles conseguem transmitir suas reivindicações identitárias através de uma expressividade actancial que não depende apenas dos diálogos: a presença física dos atores faz com que cada componente fisionômico seja eloqüentemente aproveitado, conforme ocorre com Kika (Kika Sena), a colega transexual no restaurante em que Sandra trabalha. Pouco a pouco, descobrimos que esta última também foi envolvida romanticamente com Paulo, o que complexifica ainda mais as relações entre os personagens. Quando está em cena, Paulo implora por dinheiro, a fim de conseguir inebriar-se, mas, por motivos óbvios, tornar-se-á alvo de traficantes rivais de Alê, longe de serem tão benevolentes quanto ele. A estatística de homicídios que antecede os créditos finais não aparece por acaso!
Título original e ano: Noites Alienígenas, 2022. Direção: Sérgio de Carvalho. Roteiristas: Camilo Cavalcante, Rodolfo Minari e Sérgio de Carvalho. Elenco: Gabriel Knoxx, Adanilo, Gleici Damasceno, Chico Diaz, Joana Gatis, Chica Arara, Bimi Huni Kuin, Duace. Gênero: . Nacionalidade: Brasil. Som Direto: Pedro Sá Earp. Diretor de Fotografia e Câmera: Pedro von Krüger, ABC. Montador: André Sampaio. Diretor de Arte: Alonso Pafyeze. Figurinistas: Mariana Braga, Maria Esther de Albuquerque. Produção: Saci Filmes. Coprodução: Com Domínio Filmes. Produtores: Karla Martins, Pedro von Krüger e Sérgio de Carvalho. Produtora Executiva: Karla Martins. Diretor de Produção: Clemilson Farias. Produção: Saci Filmes. Coprodução: Com Domínio Filmes. Distribuição: Vitrine Filmes. Duração: 01h31min.
A extraordinária direção de fotografia do também produtor Pedro von Krüger combina o esvaziamento soturno das paisagens urbanas com a restauração xamânica da harmonia florestal. O desnudamento desesperado de Paulo, numa aflição que lhe permite reencontrar as suas tradições originárias, surge como uma abdução não permitida aos demais personagens, engolidos pelas trevas balísticas das noites regidas pelo crime. As interpretações do elenco são amplamente merecedoras de elogios, numa concatenação de anseios sobrevivenciais que evoca os melhores trabalhos de John Sayles. O título enigmático faz jus à maestria do filme, portanto.
Ao final, “Noites Alienígenas” confirma o estranhamento prometido em seus jargões publicitários, justamente por abordar algo tão corriqueiro nos espaços urbanos contemporâneos. Em seu enfrentamento frontal a um subcolonialismo mortífero, representado pela naturalização das intoxicações, o filme demonstra-se tão poderoso quanto a metáfora ofídica que aparece inúmeras vezes ao longo da projeção. Enquanto propositor dialético, ele oferece-nos a peçonha intrínseca como força-motriz de autorreconhecimento comunitário. Ao enfrentar a facção rival, Alê diz que viu todos aqueles rapazes crescerem. Num momento de intimidade com Kika, Sandra estranha os rumos distintos que ela e os seus amigos de infância tomaram. Em sua singularidade, a película diz muito sobre um Brasil abafado pelos recentes estupros da extrema-direita, que esteve no poder quando o longa foi realizado. Que possamos, agora, comungar com a nossa tribo nacional: o cinema feito no Acre demonstra-se, através deste longa-metragem pioneiro, sumamente relevante!