Noites Alienígenas, de Sergio de Carvalho | Assista nos Cinemas


             
  “Você quer ser o quê? Pai de nóia?”
 
Nas primeiras imagens de “Noites Alienígenas” (2022, de Sérgio de Carvalho), os detalhes móveis das escamas de uma enorme cobra enchem a tela. Logo saberemos que isso corresponde a um delírio do jovem Paulo (Adanilo), viciado em ‘crack’, que vive numa progressiva dependência em relação à droga, não hesitando em roubar os objetos da própria mãe, a fim de tentar obter mais substâncias alucinógenas. Um detalhe interessante é que Paulo é um rapaz indígena que teria fácil acesso aos rituais místicos de seu povo, mas sua mãe Marta (Chica Arara) converte-se a uma igreja pentecostal e, como tal, reprime o acesso à comunhão com a natureza. Estamos em Rio Branco, capital do Acre, e esse é apenas um dos vários núcleos interligados no ótimo roteiro desse filme.

Adaptado livremente do romance homônimo escrito pelo próprio diretor, a estrutura narrativa dessa produção é a de filme-painel, em que vários enredos paralelos se entrecruzam. A figura central, que intersecciona os diversos personagens, é um jovem de dezessete anos, chamado Rivelino (Gabriel Knoxx), filho de Beatriz (Joana Gatis), namorado de Sandra (Gleici Damasceno) e apegado a um traficante hiponga, Alê (Chico Diaz), que ele considera muito indulgente em relação aos compradores inadimplentes. Poderosamente vivificado por um intérprete estreante – o prêmio que o ator recebeu no Festival de Gramado foi merecidíssimo! –, Rivelino gosta de compor ‘raps’ e participa da movimentação cultural da cidade, como grafiteiro, mas sucumbe gradualmente à violência relacionada ao tráfico de entorpecentes. Segundo um letreiro no desfecho do filme, os indicativos de mortalidade entre as jovens cresceu quase duzentos por cento na região metropolitana acreana, após a instalação de traficantes provenientes do Sudeste… 

A ótima montagem do filme, a cargo de André Sampaio, concede suficiente participação aos mais diversificados personagens, de modo que alguns deles conseguem transmitir suas reivindicações identitárias através de uma expressividade actancial que não depende apenas dos diálogos: a presença física dos atores faz com que cada componente fisionômico seja eloqüentemente aproveitado, conforme ocorre com Kika (Kika Sena), a colega transexual no restaurante em que Sandra trabalha. Pouco a pouco, descobrimos que esta última também foi envolvida romanticamente com Paulo, o que complexifica ainda mais as relações entre os personagens. Quando está em cena, Paulo implora por dinheiro, a fim de conseguir inebriar-se, mas, por motivos óbvios, tornar-se-á alvo de traficantes rivais de Alê, longe de serem tão benevolentes quanto ele. A estatística de homicídios que antecede os créditos finais não aparece por acaso!

Trailer

Ficha Técnica
Título original e ano: Noites Alienígenas, 2022. Direção: Sérgio de Carvalho. Roteiristas: Camilo Cavalcante, Rodolfo Minari e Sérgio de Carvalho. Elenco: Gabriel Knoxx, Adanilo, Gleici Damasceno, Chico Diaz, Joana Gatis, Chica Arara, Bimi Huni Kuin, Duace. Gênero: . Nacionalidade: Brasil.  Som Direto: Pedro Sá Earp. Diretor de Fotografia e Câmera: Pedro von Krüger, ABC. Montador: André Sampaio. Diretor de Arte: Alonso Pafyeze. Figurinistas: Mariana Braga, Maria Esther de Albuquerque. Produção: Saci Filmes. Coprodução: Com Domínio Filmes. Produtores: Karla Martins, Pedro von Krüger e Sérgio de Carvalho. Produtora Executiva: Karla Martins. Diretor de Produção: Clemilson Farias. Produção: Saci Filmes. Coprodução: Com Domínio Filmes. Distribuição: Vitrine Filmes. Duração: 01h31min.
Funcionando como uma espécie de pai adotivo para Rivelino, Alê insiste para que ele aperfeiçoe as suas capacidades artísticas, seja na composição de canções de ‘rap’, seja nas pinturas em que discos voadores aparecem como elementos recorrentes. Rivelino parece envergonhado das libações de sua mãe, ainda jovem, e irrita-se por causa dos inconvenientes trazidos à tona pelas aparições de Paulo. Idealista – num flagrante contraste com as suas atividades enquanto comerciante ilegal de substâncias –, Alê evoca os versos misteriosos da canção “Cachorro-Urubu”, composta por Raul Seixas e Paulo Coelho: “É hora de acordar/ Pra ver o galo cantar/ Pro mundo inteiro escutar”. A realidade é mais inclemente: ele será confrontado, da pior maneira, com “o crime por trás do progresso”. Entorpecida, Beatriz dança com ele, ao som de “Porto Solidão”, de Jessé. Ambos são arremessados contra o cais quase onipresente das más notícias… 

A extraordinária direção de fotografia do também produtor Pedro von Krüger combina o esvaziamento soturno das paisagens urbanas com a restauração xamânica da harmonia florestal. O desnudamento desesperado de Paulo, numa aflição que lhe permite reencontrar as suas tradições originárias, surge como uma abdução não permitida aos demais personagens, engolidos pelas trevas balísticas das noites regidas pelo crime. As interpretações do elenco são amplamente merecedoras de elogios, numa concatenação de anseios sobrevivenciais que evoca os melhores trabalhos de John Sayles. O título enigmático faz jus à maestria do filme, portanto.

Créditos: Divulgação
O filme vencedor de inúmeros prêmios no Festival de Gramado ano passado contou com estréia antecipada no Acre e chega esta semana aos cinemas de todo o país. 

Um traço comum aos jovens personagens é a urgência por pertencimento ao lugar em que habitam: por causa da supressão periférica de possibilidades, eles pensam em evadir-se de Rio Branco, em busca de condições sustentaculares que lhes assegurem as manifestações artísticas que os caracterizam. Resistir é importante, mas é algo que também extenua quem precisa dedicar várias horas do dia à sobrevivência no interior da luta de classes e das competições atávicas do Capitalismo. Rivelino será bem-sucedido ao buscar refúgio numa “família” violenta de traficantes? Carente, Beatriz implora a Alê, depois de lhe pedir dinheiro e de dizer que não quer que ele continue amigo de seu filho: “eu preciso de um baseado”!

Ao final, “Noites Alienígenas” confirma o estranhamento prometido em seus jargões publicitários, justamente por abordar algo tão corriqueiro nos espaços urbanos contemporâneos. Em seu enfrentamento frontal a um subcolonialismo mortífero, representado pela naturalização das intoxicações, o filme demonstra-se tão poderoso quanto a metáfora ofídica que aparece inúmeras vezes ao longo da projeção. Enquanto propositor dialético, ele oferece-nos a peçonha intrínseca como força-motriz de autorreconhecimento comunitário. Ao enfrentar a facção rival, Alê diz que viu todos aqueles rapazes crescerem. Num momento de intimidade com Kika, Sandra estranha os rumos distintos que ela e os seus amigos de infância tomaram. Em sua singularidade, a película diz muito sobre um Brasil abafado pelos recentes estupros da extrema-direita, que esteve no poder quando o longa foi realizado. Que possamos, agora, comungar com a nossa tribo nacional: o cinema feito no Acre demonstra-se, através deste longa-metragem pioneiro, sumamente relevante!

EM EXIBIÇÃO NOS CINEMAS!

Escrito por Wesley Pereira de Castro

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