“Tenho que perguntar ao meu marido antes: não tenho permissão para aceitar nada sem a permissão dele”!
No curta-metragem mais famoso (e premiado) do cineasta persa Ali Asgari, “Mais de Duas Horas” (2013), acompanhamos o dilema de um casal jovem que não consegue internação hospitalar para uma moça que sangrava. Seja em instituições públicas quanto particulares, as dificuldades esbarravam numa exigência elementar: a comprovação marital. Quando descobrimos que o sangramento em pauta advém de uma relação sexual espontânea – ou seja, fora do casamento –, compreendemos o porquê da perene expressão de terror nos rostos dos personagens: o que seria algo corriqueiro em diversos países é alçado à categoria criminal no Irã.
Estendendo essa mesma temática, em seu primeiro longa-metragem, “Até Amanhã” (2022), o diretor apresenta-nos a Fereshteh (Sadaf Asgari, sobrinha do diretor), uma mãe solteira que cuida de sua bebê de dois meses, enquanto lida com as exigências recorrentes de suas atividades empregatícias e universitárias. Numa tarde em que estava com vários compromissos pendentes, ela recebe uma ligação de seu pai, dizendo que um tio sofreu um acidente e que, como tal, ele e a mãe da protagonista a visitarão emergencialmente, de modo que tencionam passar a noite onde ela mora. A partir daí, Fereshteh buscará a ajuda de alguém que cuide de sua filha até a manhã do dia seguinte…
Contando com o auxílio de sua amiga Atefeh (Ghazal Shojaei), de temperamento esquentado, Fereshteh precisa encontrar também um lugar para esconder os pertences de sua bebê, a fim de que seus pais não descubram a existência da mesma. Essas tarefas simples, entretanto, desencadeiam uma via-crúcis extenuante, que obriga Fereshteh a contar uma série de mentiras, no afã por não ser denunciada por manter uma filha ilegítima.
Trailer
Ficha Técnica
Título original e ano: Ta Fata, 2022. Direção: Ali Asgari. Roteiro: Ali Asgari e Alireza Khatami. Elenco: Sadaf Asgari, Ghazal Shojaei, Amirreza Ranjbaran, Nahal Dashti, Milad Moyaei, Katayoon Saleki, Mohammad Heidari, Noyan Abdardideh, Babak Karimi, Gênero: Drama. Nacionalidade: Irã, França e Catar. Trilha Sonora Original: Ali Birang e Javad Nazari. Fotografia: Rouzbeh Raiga. Edição: Ehsan Vaseghi. Produtora: Silk Road Productions. Duração: 01h26min.
A aparentemente trivialidade desta sinopse denuncia as condições mui oprimidas em que vivem as mulheres iranianas, ainda que o diretor aborde uma faceta mais urbana de seu país, nos moldes daquilo que vemos nos filmes de seu compatriota Asghar Farhadi. Da mesma maneira que este cineasta, Ali Asgari insere os conflitos morais no centro da narrativa: por mais que Fereshteh aja de maneira progressivamente equivocada, em seu desespero, colocando os seus amigos e até mesmo desconhecidos em perigo, quem a pode recriminar? Naquela conjuntura, as mulheres são consideradas culpadas, ainda que sejam as maiores vítimas de leis nacionais sobremaneira injustas. Num determinado diálogo, Atefeh sugere cinicamente que ela pegue um táxi em direção ao parlamento, a fim de exigir que essas leis sejam alteradas. Na prática, mulheres são aprisionadas por executaram determinadas funções profissionais, conforme ocorre com uma advogada que é detida repentinamente e tem seu escritório fechado. Por qual motivo? Nem se precisa dizer, tem a ver com o fato de ela ser mulher!
De maneira audaciosa, Fereshteh sai pelas ruas, depois de esconder os pertences infantis em lugares diferentes, em busca de alguém que possa cuidar de sua filha por algumas horas. Aflita, ela visita o pai da criança, Yaser (Amir Reza Ranjbaran), que insiste que ela deveria ter abortado. Atefeh tenta comovê-lo, pedindo que ele identifique similaridades físicas com a garotinha, mas ele evita até mesmo olhar para ela. É óbvio que, para ele, Fereshteh é a única culpada pelos tormentos que vivencia!
Créditos: Divulgação
O filme passou por inúmeros festivais, como a Mostra SP e o Festival de Berlim, e recebeu nove indicações e nove prêmios. Na Mostra internacional de São Paulo, Ali Asgari foi lembrado na categoria de ''Novos Diretores'', já no Festival de Cinema de Berlim o filme apareceu indicado na categoria ''Panorama Audience''.
Cometendo múltiplas irregularidades, Fereshteh é chantageada sexualmente pelo administrador de um hospital (Babak Karimi), o que escancara a hipocrisia levada a cabo pelos homens de seu país, que se dizem seguidores dos preceitos muçulmanos, mas, na primeira oportunidade de praticar adultério, ignoram a interpretação das diretrizes religiosas – que, no Irã, são também legislativas – visto que a responsabilidade integral pelo cometimento de pecados sexuais (que, por extensão, são também crimes) recai sobre as mulheres. É um filme que desperta a nossa revolta, sobretudo quando percebemos que, se falasse a verdade, poderia ser pior para Fereshteh.
De curta duração (apenas oitenta e cinco minutos), “Até Amanhã” acompanha o périplo das duas amigas pela cidade, ao longo de algumas horas, enquanto Fereshteh recebe constantes lembretes telefônicos de que seus pais estão chegando. A tensão é onipresente e o filme chega mesmo a cansar o espectador, visto que, em linhas gerais, temos uma mesma situação repetida à exaustão, até que a protagonista tome a derradeira decisão, acerca do que fazer com a sua filha. É uma produção que, tudo indica, não converter-se-á num clássico iraniano, visto que as suas ambições técnico-discursivas estão subjugadas ao fervor denuncista. Porém, demonstra muito bem que, na contemporaneidade, ainda há muito a ser problematizado, no que tange à maneira como as mulheres são menosprezadas nalgumas sociedades. Vale pela reflexão que provoca, portanto!
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