À noite, em seu apartamento, um casal de Hong Kong, na China, declama poesias. Esse ambiente íntimo, emoldurado por uma fotografia preto e branco belíssima, inicia a revelação do cotidiano da classe média chinesa, intelectualizada, economicamente próspera e deprimida. Em pouco mais de uma hora, os diálogos do casal entre si, com os amigos ou entre estranhos, ouvidos ao acaso, traçam um panorama da China contemporânea, assolada pela pandemia da Covid-19 e pressionada por uma competitividade exacerbada, onde se é exigido de todos o máximo possível, numa premente necessidade de se manter no trabalho, a qualquer custo.
Nesse tour de force da diretora Su Qiqi, também atriz principal e roteirista, tem-se um exemplo do cinema independente da cidade de Hong Kong, que resiste à censura da China continental e imprime uma assinatura própria, diversa da de seus conterrâneos. Nessa cidade, confusa entre as tradições orientais e ocidentais, entre o capitalismo e o comunismo, os costumes se mesclam, em hábitos sofisticados, presentes principalmente entre os intelectuais universitários.
Créditos: Divulgação 47ª Mostra SP
Ficha Técnica
Título original e ano: Talks Overnight, 2023. Direção e Roteiro: Su Qiqi. Elenco: Su Qiqi, Ma Yuebo, Wang Yinjie, Chen Yuantao, Xiao Er, FEng Fang, Wu Jiajia, Zhang Kaini, Zhang Zhaoran, Liu Yun, Gu Ling, Yang Lan. Gênero: Drama. Nacionalidade: Hong Kong. Trilha Sonora Original: Ma Zhengmo. Fotografia: Zhang Zhengan. Edição: Yanan Qin. Produtora: ITCONTINGENCY CO. Duração: 01h16min.
Entre desjejuns, almoços, jantares e passagens por cafeterias, conversa-se muito sobre livros, peças de teatro, músicas, trabalho e filhos. Referências ocidentais estão espalhadas por todo o filme, desde Beatles, cartas de tarô até Kafka. Inclusive O Processo, do judeu tcheco Kafka, gera sequências enigmáticas como uma peça teatral assistida pelo casal principal, clara referência às armadilhas pelas quais todos sofridamente passam, no afã de sobreviver em um mundo cruel, inóspito e confuso, tal como neste livro europeu clássico.
Nessa sociedade em transição, eivada das tradições seculares chinesas, ao mesmo tempo que premida pelo capitalismo e sua competitividade extrema, o casal e seus amigos se esgueiram entre o medo e a ansiedade, preocupados com suas carreiras e as dos seus filhos. A professora universitária, interpretada pela diretora Su Qiqi, é o exemplo perfeito disso. Insatisfeita com seu trabalho, com seu apartamento, com seus amigos, vegeta triste e sorumbática, atraindo a compaixão de seu marido, preocupado com seu estado mental.
A fotografia do filme, em um preto e branco majestoso, conduz o casal por esse mundo kafkiano, mesmo que confortável e cheio de beleza. Os diálogos, íntimos e verdadeiros, são exemplos desta tristeza e insatisfação que incomoda a todos os personagens, principalmente a dupla principal, levando-os até a pensar em morar entre as estrelas, um eufemismo para o suicídio e a morte. Não há muita ação no roteiro, os diálogos teatralmente direcionam todo o longa-metragem, tornando-o cansativo em alguns momentos, mas recompensando o espectador com a intimidade sufocante dos personagens em sofrimento.
Há filmes melhores sobre a crise existencial da contemporaneidade, porém é muito curioso observar como a classe média intelectual chinesa, pouco representada nas telas de cinema com tal grau de intimismo, sofre com este mal.
Nota: 6/10.
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