Culpa e Desejo, de Catherine Breillat | Assista nos Cinemas


“Num tribunal, algumas vezes as vítimas se transformam em rés”… 

Em 2019, a cineasta dinamarquesa May El-Toukhy causou estardalhaço no Festival de Cinema Independente de Sundance com seu longa-metragem “Rainha de Copas”, que recebeu o Prêmio do Público, naquele ano. Além dos elogios reiterados, por parte da crítica especializada, este filme causou polêmica pelo modo desinibido como exibia as cenas de sexo entre uma mulher madura e um adolescente, que é seu enteado. Porém, o que mais espantou as plateias foi o retrato de uma mulher malevolente, que acusa falsamente o rapaz que abusou, trazendo à tona uma inversão perturbadora em relação ao que costuma acontecer na maior parte dos casos, em que homens poderosos silenciam as pessoas que violam… 

Quando a diretora Catherine Breillat, acostumada aos temas picantes e a abordagens fetichizadas do erotismo, apresentou no Festival de Cannes a sua versão para o mesmo filme, tanto seus fãs quanto detratores ficaram ouriçados: a sinopse é o ponto de partida ideal para que ela perpetrasse seus elogios estéticos à perversão, num tipo de construção tramática que evita os julgamentos morais. Ao invés disso, ela prefere fisgar o espectador através de identificações personalísticas que eles geralmente têm vergonha de admitir. Como isso poderia ser aplicado a este filme, portanto? 

A tendência contemporânea aos “cancelamentos” associados a comportamentos socialmente dissonantes – e/ou ostensivamente criminais – talvez tenha obrigado a realizadora a imitar o percurso directivo de sua colega nórdica: os dois primeiros terços do filme são bastante assemelhados ao que ocorre na produção original, com uma diferença significativa, de cariz estritamente cinematográfico. Para Catherine Breillat, a delicada situação em que uma advogada especializada em casos de estupro transa com um menor de idade não recai na obviedade discursiva: o desfecho em aberto, radicalmente distinto do filme original, que o diga! 

Mas falemos sobre o que está em cena aqui: no início, Anne (a mui talentosa Léa Drucker) está auxiliando uma jovem abusada a preparar-se para o massacre moralista com o qual ela pode se deparar no tribunal, em razão de a mesma ser relativamente promíscua em sua vida íntima. Bem-sucedida na carreira, Anne vive com seu esposo Pierre (Olivier Rabourdin), mais velho, a ponto de ela declarar, em tom de brincadeira, ser um tanto gerontófila. Eles adotaram duas adoráveis garotinhas chinesas, mas, subitamente, precisam lidar com a convivência forçada com Théo (Samuel Kircher), filho de um casamento anterior de Pierre, que morava na Suíça, mas é expulso do colégio, após socar um professor. A sua chegada ocasionará a percepção de que o casamento de Anne e Pierre não é tão perfeito quanto eles demonstram… 

Créditos: Synapse Distribuition / Divulgação
Para entrar no personagem, a diretora instruiu a atriz Léa Drucker para se imaginar como a bela e jovem Pauline em ''Pauline na Praia'' (1983), de Éric Rohmer.

Se, no início, Anne sente-se incomodada por causa das posturas rebeldes e/ou desleixadas do garoto, ela gradualmente cede aos seus encantos, visto que as suas filhas ficam encantadas por ele. É fácil compreender o porquê: a diretora escolheu um jovem ator com traços francamente apolíneos, uma espécie de Tadzio hodierno, cuja combinação entre olhar e sorriso seduz quem se aproxima dele. E ela faz questão de captar os detalhes de sua beleza física através de ‘close-ups’ sobremaneira estudados. Não tarda para que Anne retribua os persistentes flertes do rapaz. 

Em verdade, a aproximação sexual entre a madrasta e o enteado ocorre em meio a declarações de enfado relacional, mas, por ser inexperiente, o garoto tornar-se-á apaixonado por Anne, e desencadeará uma série de problemas, por não conseguir refrear este segredo. A maturidade advocatícia de Anne, entretanto, fará com que ela domine a situação, de modo que o filme – retomando uma temática recorrente na filmografia da diretora – passa a questionar as afecções provocadas pela fragilidade de alguém. E, neste sentido, tanto a dedicação da advogada às suas clientes abusadas quanto a relação entremeada por inveja com a sua irmã Mina (Clotilde Courau) são responsáveis pela implantação de uma ambigüidade superior ao determinismo vilanesco do longa original. 

Ainda que, na maior parte da extensão de “Culpa e Desejo” (2023), o enredo seja deveras assemelhado à trama da qual foi adaptado, a diretora concede uma atenção pormenorizada a elementos visuais e sonoros, como os enquadramentos abundantes em tons esverdeados e a trilha musical que conta com a colaboração da baixista Kim Gordon. Em diversos instantes, a cineasta permite que experimentemos o êxtase sensório dos personagens, como quando Anne abraça Théo num patinete, nas seqüências em que ela conduz o seu automóvel e no esplêndido desfecho, quando a luz de um ambiente apaga-se de maneira solene. Não obstante parecer um filme pudico, para os padrões amorais da diretora, o trecho em que o roteiro (co-escrito por ela e pelo também crítico Pascal Bonitzer, a partir das idéias da dinamarquesa Maren Louise Käehne) assume uma trajetória distinta da película original ajuda-nos a compreender o que levou Catherine Breillat a aceitar este projeto aparentemente menos autoral: naquilo que não é dito – mas inteligentemente mostrado -, ela prova que permanece uma das cineastas mais inspiradas, sensíveis e contraventoras da atualidade! 

Trailer


Ficha Técnica
  • Título original e anoL'été dernier / Last Summer, 2023. Direção: Catherine Breillat. Roteiro: Catherine Breillat e Pascal Bonitzer - baseado no roteiro original de Maren Louise Käehne e May el-Toukhy. Elenco: Léa Drucker, Samuel Kircher, Olivier Rabourdin, Clotilde Courau, Serena Hu, Angela Chen, Romain Maricau, Romane Violeau, Marie Lucas, Nelia Da Costa, Lila-Rose Gilberti, Jean-Christophe Pilloix. Gênero: Drama, thirller. Nacionalidade: França e Noruega. Fotografia: Jeanne Lapoirie. Edição: François Quiqueré. Figurino: Khadija Zeggaï. Distribuição: Synapse Distribution. Duração: 01h44min.
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Escrito por Wesley Pereira de Castro

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