“Num tribunal, algumas vezes as vítimas se transformam em rés”…
Quando a diretora Catherine Breillat, acostumada aos temas picantes e a abordagens fetichizadas do erotismo, apresentou no Festival de Cannes a sua versão para o mesmo filme, tanto seus fãs quanto detratores ficaram ouriçados: a sinopse é o ponto de partida ideal para que ela perpetrasse seus elogios estéticos à perversão, num tipo de construção tramática que evita os julgamentos morais. Ao invés disso, ela prefere fisgar o espectador através de identificações personalísticas que eles geralmente têm vergonha de admitir. Como isso poderia ser aplicado a este filme, portanto?
A tendência contemporânea aos “cancelamentos” associados a comportamentos socialmente dissonantes – e/ou ostensivamente criminais – talvez tenha obrigado a realizadora a imitar o percurso directivo de sua colega nórdica: os dois primeiros terços do filme são bastante assemelhados ao que ocorre na produção original, com uma diferença significativa, de cariz estritamente cinematográfico. Para Catherine Breillat, a delicada situação em que uma advogada especializada em casos de estupro transa com um menor de idade não recai na obviedade discursiva: o desfecho em aberto, radicalmente distinto do filme original, que o diga!
Mas falemos sobre o que está em cena aqui: no início, Anne (a mui talentosa Léa Drucker) está auxiliando uma jovem abusada a preparar-se para o massacre moralista com o qual ela pode se deparar no tribunal, em razão de a mesma ser relativamente promíscua em sua vida íntima. Bem-sucedida na carreira, Anne vive com seu esposo Pierre (Olivier Rabourdin), mais velho, a ponto de ela declarar, em tom de brincadeira, ser um tanto gerontófila. Eles adotaram duas adoráveis garotinhas chinesas, mas, subitamente, precisam lidar com a convivência forçada com Théo (Samuel Kircher), filho de um casamento anterior de Pierre, que morava na Suíça, mas é expulso do colégio, após socar um professor. A sua chegada ocasionará a percepção de que o casamento de Anne e Pierre não é tão perfeito quanto eles demonstram…
Créditos: Synapse Distribuition / Divulgação
Para entrar no personagem, a diretora instruiu a atriz Léa Drucker para se imaginar como a bela e jovem Pauline em ''Pauline na Praia'' (1983), de Éric Rohmer.
Se, no início, Anne sente-se incomodada por causa das posturas rebeldes e/ou desleixadas do garoto, ela gradualmente cede aos seus encantos, visto que as suas filhas ficam encantadas por ele. É fácil compreender o porquê: a diretora escolheu um jovem ator com traços francamente apolíneos, uma espécie de Tadzio hodierno, cuja combinação entre olhar e sorriso seduz quem se aproxima dele. E ela faz questão de captar os detalhes de sua beleza física através de ‘close-ups’ sobremaneira estudados. Não tarda para que Anne retribua os persistentes flertes do rapaz.
Em verdade, a aproximação sexual entre a madrasta e o enteado ocorre em meio a declarações de enfado relacional, mas, por ser inexperiente, o garoto tornar-se-á apaixonado por Anne, e desencadeará uma série de problemas, por não conseguir refrear este segredo. A maturidade advocatícia de Anne, entretanto, fará com que ela domine a situação, de modo que o filme – retomando uma temática recorrente na filmografia da diretora – passa a questionar as afecções provocadas pela fragilidade de alguém. E, neste sentido, tanto a dedicação da advogada às suas clientes abusadas quanto a relação entremeada por inveja com a sua irmã Mina (Clotilde Courau) são responsáveis pela implantação de uma ambigüidade superior ao determinismo vilanesco do longa original.
Ainda que, na maior parte da extensão de “Culpa e Desejo” (2023), o enredo seja deveras assemelhado à trama da qual foi adaptado, a diretora concede uma atenção pormenorizada a elementos visuais e sonoros, como os enquadramentos abundantes em tons esverdeados e a trilha musical que conta com a colaboração da baixista Kim Gordon. Em diversos instantes, a cineasta permite que experimentemos o êxtase sensório dos personagens, como quando Anne abraça Théo num patinete, nas seqüências em que ela conduz o seu automóvel e no esplêndido desfecho, quando a luz de um ambiente apaga-se de maneira solene. Não obstante parecer um filme pudico, para os padrões amorais da diretora, o trecho em que o roteiro (co-escrito por ela e pelo também crítico Pascal Bonitzer, a partir das idéias da dinamarquesa Maren Louise Käehne) assume uma trajetória distinta da película original ajuda-nos a compreender o que levou Catherine Breillat a aceitar este projeto aparentemente menos autoral: naquilo que não é dito – mas inteligentemente mostrado -, ela prova que permanece uma das cineastas mais inspiradas, sensíveis e contraventoras da atualidade!
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Ficha Técnica
- Título original e ano: L'été dernier / Last Summer, 2023. Direção: Catherine Breillat. Roteiro: Catherine Breillat e Pascal Bonitzer - baseado no roteiro original de Maren Louise Käehne e May el-Toukhy. Elenco: Léa Drucker, Samuel Kircher, Olivier Rabourdin, Clotilde Courau, Serena Hu, Angela Chen, Romain Maricau, Romane Violeau, Marie Lucas, Nelia Da Costa, Lila-Rose Gilberti, Jean-Christophe Pilloix. Gênero: Drama, thirller. Nacionalidade: França e Noruega. Fotografia: Jeanne Lapoirie. Edição: François Quiqueré. Figurino: Khadija Zeggaï. Distribuição: Synapse Distribution. Duração: 01h44min.
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