Quando Suzanne Collins, autora da trilogia de sucesso Jogos Vorazes, anunciou que iria lançar mais um livro sobre a saga, até os fãs ficaram divididos inicialmente. A obra se trataria de uma história da origem dos jogos e da ascensão de Coriolanus Snow ao poder. É compreensível entender porquê foi uma escolha que gerou certo receio, mas essa história nos leva a buscar mais sobre os jogos e seus locomotores, algo que enriquece ainda mais os fãs das obras literárias. E é isso o que a adaptação de A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes, dirigida por Francis Lawrence (diretor responsável por todos os outros filmes da série Hunger Games), que estreia agora em 2023, quer mostrar também.
A trama criada por Collins evidencia o porquê não é muito legal romantizar crianças morrendo nos jogos vorazes. Os primeiros livros, e responsáveis pelas adaptações para o cinema, foram escritos com base no consumo de notícias sobre guerras e reality shows sem medida e como o sofrimento foi normalizado no meio disso por puro entretenimento dentro da sociedade. Neste novo capítulo da série, o espectador é instigado a perceber como a crueldade permeia o mundo e o quão importante é a propaganda de guerra para a manipulação governamental ter efeito sobre os povos.
Aliás, é quase impossível separar a obra literária de sua formatação visual, ao abordar a adaptação. E é certo dizer que tudo foi pensado com muito cuidado para honrar a escrita e o conjunto de histórias que vieram antes desta. Mas para se manter como um produto independente, acredita-se que a produção optou por não fazer tanto fanservice. Era esperado que Donald Sutherland, interprete do Presidente Snow nos filmes, aparecesse, mas somente a voz do ator pode ser ouvida ao final dos créditos.
Neste filme, 64 anos antes da revolução do tordo, vemos Tom Blyth (Wash Club) encarnar o jovem Coriolanus Snow, com maestria. Tom sabe conduzir o público pela jornada de Snow, antes de ser vivido por Sutherland, com uma interpretação singular. O filme não tenta nos fazer entender o lado de Snow, do porque ele se tornou o presidente tirano de Panem. Pelo contrário, o longa acompanha Snow que desde sempre, acreditava que tudo era seu por direito e iria fazer qualquer coisa para manter, ou ter de volta, todo o luxo que ele já experimentou na vida. Logo, é perspicaz não trazer Donald para as telas em alguma cena final, ou pós-crédito. Tanto para não ofuscar o protagonismo de Tom, como para deixar que as pessoas vejam o longa caminhando sozinho e sem amarras. Apesar das referências sutis a personagens queridos e clássicos que amamos, como quando é mencionada a planta com o nome de Katniss, a protagonista da saga original.
Trailer
Ficha Técnica
Título original e ano: The Hunger Games - The Ballad of Songbirds & Snakes. Direção: Francis Lawarence. Roteiro: Michael Lesslie e Michael Arndt. Elenco: Viola Davis, Rachel Zegler, Peter Dinklage, Fionnula Flanagan, Tom Blyth, Dexter Sol Ansell, Hunter Schafer, Rosa Gotzler, Jason Schwartzman. Gênero: Drama, Ação, Aventura. Nacionalidade: Eua. Trilha Sonora Original: James Newton Howard. Fotografia: Jo Willems. Edição: Mark Yoshikawa. Figurino: Trish Summerville. Design de Produção: Uli Hanisch. Distribuidora: Paris Filmes. Duração: 2h37min.
O filme mescla cenas chave do livro muito bem. Para que o cinéfilo possa ver como os cidadãos da Capital estavam durante a guerra e como eles a reconstruíram, com base na exploração desse pós-guerra, alimentam cada vez mais a demonização dos rebeldes. A cena de abertura exibe Snow ainda criança, em meio ao caos dos dias escuros, correndo atrás de comida no lixo. É quando ele se depara com um homem cortando a perna de uma pessoa morta e levando o membro decepado para casa. Essa selvageria dos tempos de desespero adentraram a alma do pequeno futuro presidente, mas não o fizeram sentir empatia pelo próximo. O fizeram ser vidrado no controle dos demais. E quando somos transportados para a vida de Coriolanus jovem, vemos Tom o interpretar de uma forma ainda mais cruel que o personagem imaginativo dos livros.
A crueldade de Coriolanus se intensifica, ainda que a família dele tenha ficado na miséria no pós-guerra, onde ele finge ainda ser de uma das famílias mais ricas de Panem e discursa sobre ter desperdiçado comida em casa. Ele e os amigos da escola da capital nasceram no luxo e cresceram sendo ensinados a desprezar os distritos. A ver as pessoas, as crianças desses lugares, como bichos. Mas o jovem Coriolanus não tem dinheiro e depende de uma bolsa oferecida por uma nova família rica vinda do Distrito 2. É assim que vão ser realizados os primeiros jogos vorazes em que os tributos terão mentores. Mas aqui, os mentores seriam os estudantes da academia de Panem. E o tutor que fizesse sua parte da melhor maneira, ganharia o Prêmio Plinth, que para Snow, garantiria a ida para a universidade.
O longa-metragem é dividido em três atos, assim como o livro. E no primeiro, vemos a jornada de Coriolanus como mentor de Lucy Gray Baird, interpretada por Rachel Zegler (West Side Story). Nesse ponto, entra uma parte crucial, que além de entender que a trama se trata de um prequel da série Jogos Vorazes, ela é essencialmente ligada à músicas. E é aqui que entra Lucy, que com a potência vocal emprestada por Rachel, conquista os cidadãos da capital, com sua entrada caótica e musical, na colheita, onde é escolhida como tributo do Distrito 12. Com direito a vestido colorido e cobras sendo jogadas na filha do prefeito, Lucy muda a perspectiva de Snow, que achava ter pego o tributo mais fraco da ninhada.
Créditos: Divulgação / Paris Filmes / Lionsgate
Rachel Zegler, que aparece como protagonista aqui, tem a mesma idade que Jennifer Lawrence quando o primeiro Jogos Vorazes foi lançado em 2012, 22 anos.
É importante perceber que o filme não romantiza a relação de Snow e Lucy, que embora tenham tido um envolvimento pessoal, apresentam mais uma dinâmica de poder e manipulação fortíssima, do que amor genuíno. O que se pode ver, que vai os aproximar, deixando claro que existe uma tensão entre eles, que será explorada mais fortemente no terceiro ato da obra. Snow segue com sua mentoria, e acaba se envolvendo com Lucy. Num determinado momento, ele não sabe se tudo o que fez foi por interesse próprio, por realmente acreditar que Lucy podia vencer os jogos, ou por ter se apaixonado por ela. E no meio disso tudo, temos Viola Davis (Mulher Rei), como a imprevisível doutora Gaul, idealizadora dos jogos, que testa os limites de Snow até ele se dobrar as vontades dela. E também temos Peter Dinklage (Cyrano) como Casca Highbottom, um dos criadores dos jogos. Ele é alguém que despreza Snow, por seu histórico com a família. Uma das melhores falas do filme cabe a ele, porque aqui, é mais explorada essa “rivalidade”. Os Snow tem um dito que é muito repetido por Coriolanus ao longo do filme: Snow cai como a neve, sempre por cima. E quando tudo no plano do jovem tutor desaba após os jogos, Casca debocha da frase, devolvendo: Está ouvindo? É o som da neve caindo. O elenco de peso ainda conta com Jason Shwartzman (Asteroid City, Mainstream), como Lucretius ‘Lucky’ Flickerman, mágico, homem do tempo e o primeiro apresentador dos jogos vorazes. Jason entrega como Lucky a dose certa de alívio cômico com toques de sarcasmo e morbidez, durante o filme.
No universo de origem de Snow, ainda existem algumas figuras importantes. A primeira talvez seja a prima Tigris Snow, interpretada por Hunter Schafer (Mother Marry, Euphoria) aqui. Os fãs mais antigos a reconhecem do último filme da saga original, A Esperança - Parte 2, onde é vivida por Eugenie Bondurant (Clube da Luta), e está pronta para participar da revolução contra o tirano. Mas antes de querer se vingar do temido presidente de Panem, Tigris foi uma prima dedicada, que temia pela evolução da maldade na vida de “Coryo”, como ela carinhosamente chamava Coriolanus. Nesta fase origem, o espectador acompanha,, nas poucas cenas de Tigris, como ela se importava com o que passava na vida do primo, mas como queria que ele desenvolvesse também maior humanidade e empatia com os próximos. A química entre eles é forte e fraternal e é possível imaginar as várias formas que ele foi a decepcionando, antes de a trair de fato. Coriolanus acaba tendo inúmeros motivos ao longo de sua jornada para escolher um caminho que não fizesse tantas pessoas sofrerem, mas não o segue. Outra personagem que define o caminho de Snow é Sejanus Plinth, interpretado por Josh Andrés Rivera (West Side Story), que vive o suposto melhor amigo de Snow. Coriolanus não suporta Sejanus, cujo a família é a mais nova rica da capital, com dinheiro proveniente das armas do Distrito 2. O pai de Sejanus resolve tudo com suborno e coloca o filho na academia da capital com todos os privilégios possíveis. Coisa que Sejanus despreza e Coriolanus inveja. Josh o interpreta com uma rebeldia e paixão contidas, e o personagem é atraído a Snow.
O elenco de tributos e mentores soube entregar a rebeldia dos distritos e o elitismo dos filhos dos mais ricos da capital e mostrar que os tributos são vistos como animais pela maioria deles. A guerra desumanizou os distritos e dividiu essas pessoas a ponto da doutora Gaul querer explorar e vender os jogos como um entretenimento. Quando os tributos e os mentores visitam a arena, a sensação é de que estamos lá com eles. Assim, quando a ação acontece, o impacto atinge quem está do outro lado da tela. E enquanto o primeiro ato é uma introdução lenta de como Snow virou mentor de Lucy. O segundo ato é voraz, com jogos de câmera que nos fazem sentir como se estivéssemos vivendo aquilo.
Créditos: Divulgação / Paris Filmes / Lionsgate
O longa recebeu aval do Sindicato dos Atores (SAG) para ter divulgação do elenco durante a greve em Hollywood devido a Lionsgate não fazer parte da AMPTP (Alliance of Motion Picture and Television Producers).
O terceiro ato tira de Snow tudo que o caracteriza e o leva para uma nova e infeliz vida no Distrito 12, como pacificador. Lá, ele reencontra Lucy, e eles começam um romance secreto. Mas o fantasma da antiga vida de Snow o atormenta e é possível ver todo o dilema moral transformando as faces de Tom Blyth, que transita entre o homem que se contenta com o que o destino lhe reservou, e o homem fascinado por controle, que finalmente entendeu os testes da doutora Gaul e o porque dos jogos existirem.
É perturbador, mas é fascinante acompanhar a atuação de Tom, até o clímax do seu personagem. Até o ponto em que ele para de questionar se seus atos foram por motivos válidos e bons e é tomado pela vontade de controlar a tudo e a todos. Não que isso nunca estivesse lá, mas no terceiro ato, Snow se transforma naquele ditador que conhecemos. Inclusive, o filme se destaca, onde talvez, o livro se torna nublado demais. O Distrito 12 é o verdadeiro protagonista das sagas, porque tudo começou e terminou lá. E assim, começa e termina a saga do tirano Snow.
Francis Lawrence, o diretor do longa, também dirigiu os três filmes da saga original. E repetiu a dose da parceria com Nina Jacobson, que assina a produção junto com Henning Molfenter, Christoph Fisser e Charlie Woebcken. Além disso, Francis assina a produção executiva, junto da autora dos livros, Suzanne Collins. Jo Willems é responsável pela cinematografia, Uli Hanisch, pelo design de produção. Ainda repetem a parceria, Trish Summerville, como a responsável pelo figurino, trazendo detalhes, como referências a Katniss nas roupas de Lucy Gray Bird e James Newton Howard também segue com a composição da trilha sonora, nos fazendo sentir a autoridade asfixiante dos idealizadores dos jogos de Panem, e dos pacificadores.
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