A Linha, de Ursula Meier | Assista nos Cinemas

 

“Este é o primeiro Natal sem piano nesta casa. O amor nos ajudará a preencher o vazio”… 


Na abertura de “A Linha” (2022, de Ursula Meier), diversos objetos se espatifam numa parede, provavelmente atirados durante uma briga. Esta seqüência ocorre em câmera lenta, e notamos que muitos destes objetos correspondem ao universo musical, como LPs e partituras. Não escutamos os sons, mas sabemos que há muita animosidade entre os envolvidos. Até que o juiz interpretado por Jean Leclerc explica a situação-chave, à guisa de medida restritiva: a impulsiva Margaret (Stéphanie Blanchoud) está proibida de aproximar-se a menos de cem metros da residência de sua mãe, Christina (Valeria Bruni Tedeschi), em razão de tê-la estapeado. O pior: por causa da violência de sua filha, Christina perde a maior parte de sua audição!

O ponto de partida deste filme – co-escrito pela diretora e por sua protagonista, além de Antoine Jaccoud – é sobremaneira delicado, no sentido de que aborda o espancamento sofrido por uma mulher pelas mãos de sua própria filha, que parece não ter ocorrido pela primeira vez. Christina é uma mulher volúvel que, em sua juventude, fôra uma pianista bem-sucedida; Margaret, por sua vez, herdou este talento musical de sua mãe, mas, por causa de seu temperamento difícil, consegue ocupar-se apenas em atividades não registradas, o que talvez seja o motivo do desentendimento renitente entre as duas mulheres… 

Além de Margaret, Christina possui mais duas filhas: Louis (India Hair) possui “uma vida normal” e está grávida de gêmeas, enquanto a garotinha Marion (Elli Spagnolo), com apenas doze anos de idade, deseja ser cantora lírica, com forte tendência religiosa. Em razão das constantes brigas entre as suas familiares, ela volta-se cada vez para a adoração a Deus, agindo de uma maneira que, eventualmente, beira o fanatismo. Mas isso surge como sintoma de um problema comum a todas as mulheres da família: a histeria comportamental. 


Trailer



Ficha Técnica
Título Original e Ano: La Ligne, 2022. Direção: Ursula Meier. Roteiro: Ursula Meier, Stéphanie Blanchoud e Antoine Jaccoud - com colaborações de Robin Campillo e Nathalie Najem. Elenco: Stéphanie Blanchoud, Valeria Bruni Tedeschi, Elli Spagnolo, India Hair, Dali Benssalah, Benjamin Biolay, Eric Ruf, Thomas Wiesel, Gênero: Drama. Nacionalidade: Suiça, França e Bélgica. Trilha Sonora Original: Jean-François Assy, Benjamin Biolay e Stéphanie Blanchoud. Fotografia: Agnès Godard. Edição: Nelly Quettier. Distribuição: Imovision. Duração: 01h41min.

Não sabemos quem é o pai das filhas de Christine e, pela velocidade com que ela troca de amantes, isso talvez seja um dos motivos para explicar os conflitos que surgem entre elas: sobremaneira intensas em suas volições, elas discordam até mesmo em questões íntimas, como acerca da amamentação dos bebês. Serge (Eric Ruf), o namorado de Ruf que defende Christine dos tapas de Margaret, sai de casa após perceber o rancor instaurado entre elas. É quando a mãe apaixona-se repentinamente por Hervé (Dali Benssalah), que passa a morar com ela. E Marion, evidentemente, demonstra-se incomodada… 

A medida restritiva que impede Margaret de aproximar-se da casa de sua mãe dura três meses, mas como ela gosta muito de sua irmã mais nova, insiste em ajudá-la com suas aulas de canto. Entretanto, para impedir que Margaret tenha mais problemas com a Justiça, Marion pinta uma linha circundante, com tinta azul, em torno de sua residência, para delimitar o espaço no qual sua irmã pode se locomover. Isso causa alguma zombaria entre os coleguinhas de escola de Marion e, em reação, ela reza e canta com cada vez mais fervor. Haveria possibilidade de estas pessoas conseguirem se reconciliar? 


O longa recebeu cinco indicações ao total em Festivais Europeus. No ''Swiss Film Prize'', ganhou prêmio pelo roteiro assinado pelo trio  Ursula Meier, Stéphanie Blanchoud e Antoine Jaccoud .

Essa pergunta permeia o enredo de maneira ambígua, no sentido de Margaret é uma pessoa difícil de simpatizar, visto que ela é constantemente agressiva. Porém, ao percebermos que ela ama fervorosamente as suas irmãs, conseguimos nutrir empatia legítima em relação ao seu sofrimento. Impedida de alojar-se em sua casa, ela vive provisoriamente com um ex-namorado cantor, Julien (Benjamin Biolay), que consegue dirimir a sua resistência em voltar aos palcos. É quando descobrimos os talentos de Stéphanie Blanchoud: as canções intimistas que ela executa são belíssimas, inclusive por sintetizar os dramas que balizam o filme! 


Conduzido entre a histeria e o frenesi reativo, “A Linha” não desemboca numa perspectiva melodramática, mesmo quando as condições emocionais tornam isso quase inevitável (vide o contexto natalino, por exemplo): Christina tem ostensivas dificuldades em assumir o afeto que sente por suas três filhas, ainda que sinta orgulho por tudo que ensinou à elas. Não obstante brigar constantemente com Margaret, intuímos que esta seja a sua favorita, justamente por ter herdado os seus dotes musicais, que ela considera menosprezados, em razão da teimosia da rapariga. O desfecho do filme evita uma reconciliação previsível, prefere que continuemos imaginariamente o que acontece após o término do prazo restritivo que impede que Margaret visite a sua mãe. Em sua estranheza, portanto, este filme muitíssimo bem dirigido e interpretado nos conquista: quem não tiver uma família complicada, que quebre o primeiro CD!


EM EXIBIÇÃO NOS CINEMAS!

Escrito por Wesley Pereira de Castro

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