“Tocar fogo no parquinho não rende direito social para ninguém – e vandalismo é crime!”
Em 2002, quando são iniciadas as filmagens, o diretor faz com que os garotos Zé Thomaz, Júlia e Cristian interajam, através das brincadeiras preferidas por cada um deles: o primeiro é de classe social alta, e os dois últimos residem numa comunidade pobre. Como seria o reencontro entre eles, vinte anos depois? A pergunta que justifica o título do filme é feita por Júlia, ainda criança, que, ao encarar a câmera, dispara algo como “amanhã vocês voltam?”…
Sim, o diretor retorna, com uma equipe modificada, em razão das novas configurações identitárias: no primeiro contato, os profissionais envolvidos eram todos exteriores à localidade registrada; no segundo, moradores da comunidade em pauta desempenham papéis fundamentais na captação de som e imagem, sendo explicitamente elogiados pelo realizador. Ao contrário de outros de seus filmes, em que o que é mostrado é suficiente para despertar as impressões espectatoriais, aqui, Marcos Pimentel preferiu acrescentar a sua voz em ‘off’, comentando diversas seqüências, além do projeto como um todo. O que possui implicações discursivas evidentes, nem sempre positivas!
Trailer
Título Original e Ano: Amanhã, 2023. Direção: Marcos Pimentel. Com participações de: Cristian de Miranda, Cristiana Santos, Júlia Maria. Depoimentos/Imagens de Arquivo: Cristian de Miranda, Cristiana Santos, Júlia Maria. Nacionalidade: Brasil. Gênero: Documentário. Som: Vitor Coroa e Pris Campelo. Fotografia: Gabriela Matos. Montagem: Ivan Morales Jr.. Produção: Luana Melgaço e Vinícius Rezende Morais. Empresa Produtora: Tempero Filmes. Distribuição: Descoloniza Filmes. Duração: 106 minutos. Classificação Indicativa: 14 anos
No curta-metragem “Sanã” (2013) ou no documentário “Pele” (2021), este diretor obtinha resultados impressionantes, em vista do excelente trabalho de montagem e de seu primor fotográfico, mas, ao demonstrar-se como alguém consciente de seus privilégios classistas e que resolve investigar os percursos vitais de dois irmãos que cresceram numa favela, ele incorre numa problemática moral que torna o seu documentário deveras ambíguo. A começar pelo título, que oscila da abertura às possibilidades imprevistas a uma confirmação de determinismos sempiternos.
Por motivos compreensíveis – e deveras elogiáveis –, o diretor transforma a comparação entre épocas, nas vidas de seus personagens reais, num comentário político sobre as mudanças ocorridas no Brasil, depois da ascensão (ou assunção) do bolsonarismo. Suas intervenções enquanto narrador são condutivas, explicativas e até mesmo manipuladoras, mas sem obnubilar a inteligência espontânea dos entrevistados, como quando Júlia percebe que aquele filme não é apenas sobre ela e seu irmão, mas “sobre a sociedade brasileira como um todo”. Isso é corroborado por uma das falas do cineasta, que, ao explicar as condições de recusa de Zé Thomaz em voltar a participar do projeto, como adulto, sintetiza: “em tempos brutais como este, optar pelo silêncio é escolher um lado”. Infelizmente, procede.
O modo como Marcos Pimentel filma Júlia, adulta e mãe solteira, reagindo às suas peraltices de criança, é magistral: ela percebe que sua filha é muito parecida com ela, na mesma idade, e chora ao lembrar do irmão, que alega não ver há muito tempo. É quando descobrimos que ele está preso, e telefona para a sua mãe, diante da câmera, no presídio em que estava. Quando ele é solto, repentinamente, percebemos que sua irmã não exagerara ao dizer que “ele continua do mesmo jeitinho alegre, hoje em dia”: Cristian é fascinante, até mesmo em suas contradições, e tem plena consciência de que o que sofreu nos reformatórios adveio de suas más escolhas individuais de vida. Porém, não hesita ao clarificar a sua vinculação política: é simpatizante do petismo, torce pelo “indulto dos manos”, e fica triste ao imaginar o que Zé Thomaz se tornou, naquele fatídico ano de 2022…
Créditos: Divulgação / Descoloniza Filmes
A despeito dos ótimos participantes, este documentário é permeado por situações julgamentais que prejudicam a naturalidade dos eventos. Vide o modo como um encontro infantil, previamente decidido por outrem, é associado a uma cobrança por amizade – afinal, forçada em sua exigência de continuidade – ou as seqüências ensaiadas em que Cristian e Júlia queimam ou atiram à água, respectivamente, as fotos do que fôra vivido no primeiro registro filmado de sua infância. Isso piora quando um paternalismo directivo é instaurado, no momento em que Júlia pede que o realizador financie uma refeição numa rede de ‘fast foods’ e uma visita a um parque de diversões, ao lado de sua mãe e de seus filhos pequenos, o que se torna “o melhor dia de sua vida”. Na segunda metade do filme, em sua pressa por diagnosticar uma polarização nacional que sempre existiu enquanto projeto, o diretor obriga o que é filmado a caber em suas teses, lamentavelmente acertadas. Ou seja, aquilo que é sociologicamente comprovado afeta a originalidade reativa/interativa das pessoas, frente às câmeras, o que é questionável num documentário. O que nos devolve para o título do filme, repassado para Cristiana, a mãe dos dois irmãos: será que haveria a possibilidade de um novo encontro fílmico, daqui a vinte anos? A resposta dela justifica a relevância da sessão: é um filme que transcende o mero aspecto testemunhal, e que, por conseguinte, requer um bem-vindo debate!
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