“As igrejas morreram, entendeste?”
Mesmo quando não são exitosos em suas intenções qualitativas, os filmes de terror são deveras interessantes em seus meandros discursivos, no sentido de que fazem com que o espectador reflita acerca de como agiriam em situações limítrofes. É um gênero político por excelência, em razão de, tal qual o faroeste, investigar como ocorrem as relações interpessoais em contextos em que as leis são insuficientes para organizar a sociedade. Eis o que verificamos em “O Mal que nos Habita”, de Demián Rugna, tendo a sua ação iniciada numa cidade do interior argentino, acompanhamos a desconfiança de dois irmãos quando, numa madrugada, ouvem diversos tiros, nas proximidades da fazenda em que habitam. Primeiro, eles pensam tratar-se de caçadores, mas logo constatam que os tiros provêm de um revólver comum. Seriam bandidos? Armados e acompanhados por cachorros, eles saem para investigar. E encontram algo aterrador!
Pedro (Ezequiel Rodríguez) e Jimmy (Demián Salomón) deparam-se com restos de um cadáver, e temem que este seja um vizinho, Ruiz (Luis Ziembrowski), comumente envolvido em arengas. Entretanto, ao visitarem a pobre María Elena (Isabel Quinteros), descobrem que o filho mais velho dela está possuído por uma entidade demoníaca, e que alguém estava vindo exorcizá-lo. Esse é o pretexto para que saibamos que Ruiz despreza esta mulher, no sentido de que a considera culpada pelas situações ruins que aconteceram desde que ela supostamente invadiu as suas terras. E, por causa disso, ele resolve arrastar o homem inchado de tanto pus, a fim de despejá-lo muitos quilômetros depois. É óbvio que isso não dará certo!
Se a maquiagem deste personagem “apodrecido” assusta-nos pelo aspecto mui desagradável, a maneira como os seus vizinhos lidam com um ponto de partida sobrenatural estraga a nossa imersão no terror: afinal, eles referem-se com muita naturalidade e conhecimento de causa às manifestações demoníacas, como se aquilo fosse algo corriqueiro na região. E, para piorar, todos agem de maneira extremamente iracunda, sendo difícil diferenciar o comportamento normal dos personagens e as suas facetas possuídas por entidades malévolas…
Créditos: Shudder, Machaco Films, Aramos Cine e INCAA
Coprodução entre Argentina e Estados Unidos, a produção teve sua estreia em setembro de 2023 no Toronto International Film Festival e um mês depois chegou a internet norte-americana para aquisição. O Brasil é o penúltimo país de lançamento do filme que ainda tem estreia marcada para Abril na França.
Pedro, por exemplo, reage de maneira intransigente e violenta a tudo o que acontece, desobedecendo aos conselhos mais elementares de outrem, de modo que ele será responsável pela propagação do mal, quando invade a casa de sua ex-esposa, Sabrina (Virginia Garófalo), e despe-se subitamente em sua sala, sob os olhares assustados do novo marido dela e dos filhos de ambos. O cachorro da família será previsivelmente infectado, desencadeando uma cena crudelíssima, infelizmente sabotada, em seu impacto terrorífico, por algo que acontece logo em seguida, quando o roteiro escrito pelo próprio diretor demonstra-se indeciso acerca de como dar prosseguimento aos elementos sinistros que concebeu…
De repente, sabemos que existem regras para enfrentar os “apodrecidos” – sete, para ser preciso – e, por mais que as escute, Pedro ignora as orientações que recebe das pessoas que tentam auxiliá-lo, principalmente depois que seus filhos passam a ser perseguidos pelo demônio. Muitas coincidências surgem, a partir de então, até que ele conhece Mirtha (Silvina Sabater), uma ex-pastora evangélica e charlatã, que observara a manifestação primeva de um apodrecido, numa cerimônia religiosa, quando pensava que estava diante de uma encenação contratual, para ludibriar os fiéis que consideravam-na capaz de curar pessoas endemoniadas. A trama torna-se progressivamente estapafúrdia, de maneira que o excesso de racionalidade de alguns diálogos contrasta com o apelo visceral das primeiras manifestações do mal: o sobejo de explicações interdita a difusão subconsciente do medo!
Trailer
Ficha Técnica
Título original e ano: Cuando Acecha La Maldad, 2023. Direção e Roteiro: Demián Rugna. Elenco: Ezequiel Rodríguez, Demián Salomón, Silvina Sabater, Virginia Garófalo, Luis Ziembrowski. Gênero: Terror. Nacionalidade: Argentina e Estados Unidos da América. Trilha Sonora Orifinal: Pablo Fuu. Fotografia: Mariano Suárez. Edição: Lionel Cornistein. Design de Produção: Laura Aguerrebehere. Direção de Arte: Laura Aguerrebehere. Figurino: Pheonia Veloz. Distribuição: Paris Filmes. Duração: 01h39min.
Um dos problemas mais evidentes deste filme é que não se consegue desenvolver empatia com os protagonistas, no sentido de que eles agem de maneira tão agressiva quanto os seres perversos que visam eviscerar: Pedro trata a todos com desdém e arrogância, além de sucumbir a clichês familiares referentes à afeição culpada que sente por seus filhos, por mais que Mirtha tente explicá-lo que “a maldade busca as crianças e as crianças buscam a maldade”. Complicando ainda mais este terrível laudo, o filho autista de Pedro, Jair (Emilio Vodanovich), é possuído pelo demônio, mas este parece ficar preso em sua mente. Um final feliz é impraticável nesta conjuntura, não é?
Os efeitos visuais e de maquiagem do filme são inspirados, e a direção consegue impactar brevemente os espectadores, nas seqüências de malevolência explícita, mas o enredo torna-se cada vez mais absurdo – e paradoxalmente ordenado –, a ponto de, em certo momento, perdermos o interesse por aquilo que acontece. Sobretudo porque as (in)conseqüências das ações dos personagens são completamente esperadas. Resta uma lição proferida por Mirtha: “para que se possa escapar da maldade, é preciso deixar tudo para trás”. Por mais que decepcione, em saldo geral, este filme é politicamente ilustrativo dos conflitos instaurados nas zonas rurais, em que a impossibilidade de dialogar deflagra conflitos letais. Muito mais hedionda que a maldade associada aos endemoniados é o ódio banalizado entre as pessoas mostradas no filme, ostensivamente hipócritas na lida com os problemas cotidianos, como é típico dos conservadores associados aos partidos de direita. Como tal, em seus interstícios, é um filme deveras assustador!
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