quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

O Mal Que Nos Habita, de Demián Rugna | Assista nos Cinemas


“As igrejas morreram, entendeste?”

Mesmo quando não são exitosos em suas intenções qualitativas, os filmes de terror são deveras interessantes em seus meandros discursivos, no sentido de que fazem com que o espectador reflita acerca de como agiriam em situações limítrofes. É um gênero político por excelência, em razão de, tal qual o faroeste, investigar como ocorrem as relações interpessoais em contextos em que as leis são insuficientes para organizar a sociedade. Eis o que verificamos em “O Mal que nos Habita”, de Demián Rugna, tendo a sua ação iniciada numa cidade do interior argentino, acompanhamos a desconfiança de dois irmãos quando, numa madrugada, ouvem diversos tiros, nas proximidades da fazenda em que habitam. Primeiro, eles pensam tratar-se de caçadores, mas logo constatam que os tiros provêm de um revólver comum. Seriam bandidos? Armados e acompanhados por cachorros, eles saem para investigar. E encontram algo aterrador!

Pedro (Ezequiel Rodríguez) e Jimmy (Demián Salomón) deparam-se com restos de um cadáver, e temem que este seja um vizinho, Ruiz (Luis Ziembrowski), comumente envolvido em arengas. Entretanto, ao visitarem a pobre María Elena (Isabel Quinteros), descobrem que o filho mais velho dela está possuído por uma entidade demoníaca, e que alguém estava vindo exorcizá-lo. Esse é o pretexto para que saibamos que Ruiz despreza esta mulher, no sentido de que a considera culpada pelas situações ruins que aconteceram desde que ela supostamente invadiu as suas terras. E, por causa disso, ele resolve arrastar o homem inchado de tanto pus, a fim de despejá-lo muitos quilômetros depois. É óbvio que isso não dará certo!

Se a maquiagem deste personagem “apodrecido” assusta-nos pelo aspecto mui desagradável, a maneira como os seus vizinhos lidam com um ponto de partida sobrenatural estraga a nossa imersão no terror: afinal, eles referem-se com muita naturalidade e conhecimento de causa às manifestações demoníacas, como se aquilo fosse algo corriqueiro na região. E, para piorar, todos agem de maneira extremamente iracunda, sendo difícil diferenciar o comportamento normal dos personagens e as suas facetas possuídas por entidades malévolas… 

Créditos: Shudder, Machaco Films, Aramos Cine e INCAA
Coprodução entre Argentina e Estados Unidos, a produção teve sua estreia em setembro de 2023 no Toronto International Film Festival e um mês depois chegou a internet norte-americana para aquisição. O Brasil é o penúltimo país de lançamento do filme que ainda tem estreia marcada para Abril na França.

Pedro, por exemplo, reage de maneira intransigente e violenta a tudo o que acontece, desobedecendo aos conselhos mais elementares de outrem, de modo que ele será responsável pela propagação do mal, quando invade a casa de sua ex-esposa, Sabrina (Virginia Garófalo), e despe-se subitamente em sua sala, sob os olhares assustados do novo marido dela e dos filhos de ambos. O cachorro da família será previsivelmente infectado, desencadeando uma cena crudelíssima, infelizmente sabotada, em seu impacto terrorífico, por algo que acontece logo em seguida, quando o roteiro escrito pelo próprio diretor demonstra-se indeciso acerca de como dar prosseguimento aos elementos sinistros que concebeu… 

De repente, sabemos que existem regras para enfrentar os “apodrecidos” – sete, para ser preciso – e, por mais que as escute, Pedro ignora as orientações que recebe das pessoas que tentam auxiliá-lo, principalmente depois que seus filhos passam a ser perseguidos pelo demônio. Muitas coincidências surgem, a partir de então, até que ele conhece Mirtha (Silvina Sabater), uma ex-pastora evangélica e charlatã, que observara a manifestação primeva de um apodrecido, numa cerimônia religiosa, quando pensava que estava diante de uma encenação contratual, para ludibriar os fiéis que consideravam-na capaz de curar pessoas endemoniadas. A trama torna-se progressivamente estapafúrdia, de maneira que o excesso de racionalidade de alguns diálogos contrasta com o apelo visceral das primeiras manifestações do mal: o sobejo de explicações interdita a difusão subconsciente do medo!

Trailer

Ficha Técnica
Título original e ano: Cuando Acecha La Maldad, 2023. Direção e Roteiro: Demián Rugna. ElencoEzequiel Rodríguez, Demián Salomón, Silvina Sabater, Virginia Garófalo, Luis Ziembrowski. Gênero: Terror. Nacionalidade: Argentina e Estados Unidos da América. Trilha Sonora Orifinal: Pablo Fuu. Fotografia: Mariano Suárez. Edição: Lionel Cornistein. Design de Produção: Laura Aguerrebehere. Direção de Arte: Laura Aguerrebehere. Figurino: Pheonia Veloz. Distribuição: Paris Filmes. Duração: 01h39min.

Um dos problemas mais evidentes deste filme é que não se consegue desenvolver empatia com os protagonistas, no sentido de que eles agem de maneira tão agressiva quanto os seres perversos que visam eviscerar: Pedro trata a todos com desdém e arrogância, além de sucumbir a clichês familiares referentes à afeição culpada que sente por seus filhos, por mais que Mirtha tente explicá-lo que “a maldade busca as crianças e as crianças buscam a maldade”. Complicando ainda mais este terrível laudo, o filho autista de Pedro, Jair (Emilio Vodanovich), é possuído pelo demônio, mas este parece ficar preso em sua mente. Um final feliz é impraticável nesta conjuntura, não é?

Os efeitos visuais e de maquiagem do filme são inspirados, e a direção consegue impactar brevemente os espectadores, nas seqüências de malevolência explícita, mas o enredo torna-se cada vez mais absurdo – e paradoxalmente ordenado –, a ponto de, em certo momento, perdermos o interesse por aquilo que acontece. Sobretudo porque as (in)conseqüências das ações dos personagens são completamente esperadas. Resta uma lição proferida por Mirtha: “para que se possa escapar da maldade, é preciso deixar tudo para trás”. Por mais que decepcione, em saldo geral, este filme é politicamente ilustrativo dos conflitos instaurados nas zonas rurais, em que a impossibilidade de dialogar deflagra conflitos letais. Muito mais hedionda que a maldade associada aos endemoniados é o ódio banalizado entre as pessoas mostradas no filme, ostensivamente hipócritas na lida com os problemas cotidianos, como é típico dos conservadores associados aos partidos de direita. Como tal, em seus interstícios, é um filme deveras assustador!

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