20 000 Espécies de Abelhas, de Estibaliz Urresola Solaguren | Assista nos Cinemas


O longa fez parte do "shortlist" espanhol para ser submetido ao Oscar 2024 como representante da Espanha na categoria de ''Melhor Filme Internacional'', mas não foi o escolhido do país. 

“O pênis de uma menina deve estar sempre limpo”!

Por mais que se saiba que a representação da transexualidade na infância assume um papel central no enredo deste filme, o roteiro evita qualquer abordagem sensacionalista da temática. Muitíssimo pelo contrário: o olhar da diretora Estibaliz Urresola Solaguren é compassado, conduz o espectador por um percurso lento de autodescoberta, que agracia mais de uma personagem: de um lado, a garotinha Lucía (Sofía Otero); do outro, sua mãe Ane (Patricia López Arnaiz).

Demoramos a entender o que está acontecendo à mãe de Lucía: após uma despedida apressada em relação ao marido Gorka (Martxelo Rubio), com quem vive em Paris, Ane volta para o vilarejo onde cresceu, no País Basco, com seus três filhos. Um deles, Aitor, recusa-se a cortar os seus longos cabelos e ignora que seja confundido com uma garota pelas pessoas com quem conversa. Sua irmã mais velha a apelida de Cocó, o que o irrita a princípio. Mas, aos poucos, vai aceitando este apelido como senha de entrosamento na nova comunidade da qual fará parte…

Aitor desenvolve uma relação cúmplice com seu irmão Eneko (Unax Hayden), que o protege quando ele urina na cama. Porém, nem mesmo Eneko consegue convencer Aitor a nadar. Todos os seus familiares se esforçam para fazê-lo aproveitar os benefícios de uma piscina pública, mas ele recusa. Logo descobriremos o porquê: ele não se sente à vontade com o próprio corpo. Muito menos com os pronomes de tratamento que lhe direcionam. Prefere não ter nome, não ser chamado de maneira alguma. Mas sua tia-avó Lourdes (Ane Gabarain) a convence de que “aquilo que não tem nome, não existe”. É quando Aitor externaliza, pela primeira vez, o desejo de ser Lucía.

                        Créditos: Especies de Abejas, Euskal Irrati Telebista (EiTB), Gariza Films, Inicia Films e ICAA
Aos nove anos de idade, Sofia Eterno levou o Urso de Prata no Festival de Berlin por sua perfomance como Lucía na película.

O percurso dramático para tal constatação identitária é intencionalmente lento, plurivocal: ao mesmo tempo em que acompanhamos o amadurecimento precoce de Lucía, constatamos que sua mãe está confusa quanto aos rumos de sua vida: artista plástica, como fôra também o seu pai, ela está prestes a conseguir uma vaga como professora de artes, na França, mas precisa elaborar uma obra autoral. Porém, ela não consegue escolher qual objeto figurativo a fascina primordialmente, por causa de lembranças traumáticas quanto às relações adúlteras que seu pai mantinha com as suas musas inspiradoras.

Numa cena rápida, porém muito significativa, Ane pede para que suas filhas esculpam algo na cêra, à guisa de autorretratos. Sua filha mais velha delineia um corpo feminino, cujas formas idealizadas fazem com que sua mãe perceba que ela possui domínio representativo de volume, o que ela responde como sendo algo adquirido geneticamente. Aitor, entretanto, esculpe uma sereia, dizendo que quer ser como ela. Mais cedo, alguém comenta que sereias não existem, ao que uma voz sábia contra-argumenta: “sereias são parte de nossa imaginação. E a imaginação é parte de nossa realidade”!

Convivendo bastante com Lourdes, e aprendendo com ela os procedimentos da apicultura, Aitor sente-se à vontade para externar as suas projeções lúdicas de construção da identidade particular: numa brincadeira com a tia-avó, ele define a si mesmo como a abelha-rainha de sua colméia familiar, o que nos interdita – sobretudo textualmente – de continuarmos referindo-nos a esta encantadora criança como um personagem masculino. Num vislumbre melancólico pueril, Aitor pensa que carecerá morrer, a fim de renascer como Lucía. Graças à compreensão e aos estímulos de sua tia-avó, isso acontecerá em vida, ainda na infância. E é justamente este processo que permitirá que Ane finalmente descubra a extensão de seus talentos.

Bastante dialogado e sem recorrer a uma trilha musical apelativa, “20.000 Espécies de Abelhas” obriga o espectador a ser paciente, a observar com fascínio as interações afetuosas entre Lucía, sua mãe e seu irmão Eneko. Ao fazer amizade com uma garotinha local, Lucía sente-se à vontade para despir-se, antes de trocar biquínis e mergulhar num rio. Ao vê-la nua, sua amiguinha apenas comenta: “na minha classe, tem um menino com pepeka”. Sob o jugo da inocência infantil, Lucía é aceita, reconhecida como tão natural quanto as abelhas que sua tia-avó cuida. Neste sentido, o filme rejeita uma trama demarcada pela espera de um clímax. Este não ocorre: as situações são diluídas no cotidiano, exceto por um instante em que a protagonista infantil desaparece, e seus entes queridos precisarão compreender que, para que ela reapareça (e, por extensão, exista), terá que ser chamada pelo nome que escolheu para si mesma. Talvez não seja um filme de fácil apreciação, devido ao seu ritmo plácido e à estranheza do idioma original, mas vale muito a pena testemunhar o brilho contagiante nos olhares de mãe e filha, sempre que estão juntas e se reconhecem, uma na outra, enquanto representantes consangüíneas de uma mesma linhagem humana. É quando nós, espelhando Ane, admitimos que manter uma família unida é também uma forma de arte. Sofía Otero está magnífica em cada aparição em cena!

Trailer


Ficha Técnica
  • Título Original e Ano: 20.000 Especies de Abejas,, 2023. Direção e Roteiro: Estibaliz Urresola Solaguren. Elenco: Sofía Otero, Patricia López Arnaiz, Ane Gabarain, Itziar Lazkano, Sara Cózar. Gênero: Drama. Nacionalidade: Espanha. Música: Eva Valiño. Direção de Fotografia: Gina Ferrer García. Direção de Arte: Izaskun Urkijo Alijo. Figurino: Nerea Torrijos. Música: Eva Valiño. Edição: Raúl Barreras. Distribuição: Imovision. Duração: 125 min. Classificação: 14 anos.

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Escrito por Wesley Pereira de Castro

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