“Tu deverias te vestir de acordo com o que sentes. Ou como tu queres te sentir”…
Apesar da associação do cineasta Christoph Hochhäusler à Escola de Berlim – uma espécie de “Nouvelle Vague Alemã” contemporânea, segundo alguns críticos –, a direção de “Até o Cair da Noite” (2023) é tão clássica que sua adesão às convenções do gênero policial chega mesmo a lembrar filmes como “Máquina Mortífera” (1987, de Richard Donner). Por se tratar de uma ótima referência hollywoodiana, há muito o que ser elogiado neste filme, portanto!
A trama é centrada em Robert Demant (Timocin Ziegler), um policial infiltrado que, a fim de desbaratar uma organização de tráfico de drogas ‘on-line’, simula um romance com a transexual Leni Malinowski (Thea Ehre, premiada por este papel), em liberdade condicional, para colaborar com uma delicada investigação. Ela fôra condenada a dois anos de prisão, quando vendia substâncias ilícitas, ansiando obter o dinheiro necessário para a sua cirurgia de redesignação sexual…
Robert aproximou-se de Leni quando ela ainda atendia pelo seu “nome morto”, e trabalhava com engenharia de som na boate do empresário Victor Arth (Michael Sideris), que é investigado na operação supracitada. Ocorre que, ao se assumir como homossexual, Robert não consegue aceitar a transexualidade de sua amada, agindo com rispidez crescente em relação a ela. Os conflitos entre eles ficam cada vez mais severos, a ponto de os mesmos discordarem quanto ao modo como a história de amor terminará: ela acredita na possibilidade de um final feliz, inspirada pelas “fotos do futuro”, que eles são obrigados a tirar, a fim de validar o disfarce relacional; ele, por sua vez, insiste em tocar na genitália com a qual ela já não se identifica, o que faz com que eles briguem o tempo inteiro e não se satisfaçam eroticamente. Exceto por uma inaudita cena de masturbação, após um beijo entre os vidros da porta de um automóvel.
Não obstante os embates românticos ocuparem trechos consideráveis do roteiro, escrito por Florian Plumeyer, o filme insiste no avanço da investigação policial, de modo que Robert e Leni se inscrevem numa aula de dança de salão, para que possam atrair a atenção de Victor e, assim, ela possa incriminá-lo. Porém, Leni torna-se amiga da nova namorada do empresário, Nicole (Ioana Iacob), e passa a aconselhá-la durante as recorrentes altercações com Victor. A proximidade entre ambas faz com que elas se identifiquem, sobretudo no que tange às conseqüências entristecedoras da indiferença masculina.
Créditos: Heimatfilm, Westdeutscher Rundfunk (WDR) e ARTE / Divulgação: Imovision
A produção foi indicada ao Urso de Prata no Festival de Berlim em 2023 nas categorias de melhor filme e melhor perfomance coadjuvante
A condução tradicional da narrativa permite que nos afeiçoemos aos dilemas dos personagens e, por mais que percebamos que o romance entre Victor e Leni está fadado a dar errado, torcemos para que eles fiquem juntos no desfecho. Mas isso é atravessado por questões secundárias, como a carência emocional de Victor, que desenvolve uma estima súbita por Robert, contratando-o como motorista e compartilhando consigo as frustrações de seu primeiro casamento, ou as inquietações de Leni, tratada como mera informante pelos colegas policiais de Robert, sendo dispensável, apesar dos esforços e dos perigos a que se submete. Em sua descrição dos procedimentos investigativos, o filme abre espaço para reflexões sobre os preconceitos e desconfianças enfrentados pelas pessoas transexuais.
Há alguns problemas tramáticos que devem ser evidenciados, como o desleixo na exposição do cotidiano de Leni, que, repentinamente, abandona o convívio com as suas amigas de antes da prisão, e a intimidade repentina entre os dois casais que se conhecem na aula de dança. Não se trata de uma inverossimilhança propriamente dita, mas de afobamento comportamental, manifesto na interpretação mui afetada de Timocin Ziegler e nos diálogos infantilizados das brigas entre Robert e Leni, justificados pela toxicidade do relacionamento entre eles dois, que é demarcado por simultâneas doses de desejo e incompreensão. Em certa medida, é como se o enredo atualizasse temas caros ao cinema ‘noir’, conforme notado por alguns exegetas.
As duas horas de duração, entretanto, são bem aproveitadas e, ainda que não se compreendam adequadamente as nuanças da tramóia criminal de cariz cibernético, percebemos que a prisão (e/ou morte) de Victor é tão iminente quanto a separação entre Robert e Leni. É um filme tolhido pela desesperança cara a tantas obras germânicas, não sendo casual que, em determinado momento, a superior hierárquica de Robert estranhe que ele resolva se esconder na cidade onde nasceu o escritor Johann Wolfgang von Goethe [1749-1832]. Tanto o romantismo da narrativa quanto a progressão da investigação são condenados à tragicidade, da mesma maneira que é emulado pela bela canção “Eine Liebe so wie Du”, de Heidi Brühl, executada nos créditos de abertura e repetida ao final. Dadas as evidentes oposições estilísticas, há algo de “O Pagamento Final” (1993, de Brian De Palma) no entrecho, o que só contribui para que, em seu cozimento de referências-chave do gênero policial, “Até o Cair da Noite” possua um charme inequívoco!
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Ficha Técnica
Título Original e Ano: Bis ans Ende der Nacht, 2023. Direção: Christoph Hochhäusler. Roteiro: Florian Plumeyer. Elenco: Timocin Ziegler, Thea Ehre, Michael Sideris. Gênero: Policial, crime. Nacionalidade: Alemanha. Direção de fotografia: Reinhold Vorschneider. Direção de Arte: Renate Schmaderer. Música: Jörg Kidrowski. Montagem: Stefan Stabenow. Distribuição: Imovision. Produção: Bettina Brokemper. Duração: 120 min. Classificação: 14 anos.
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