A Alegria É A Prova Dos Nove, de Helena Ignez


“Não sei se Deus é maconheiro, mas toda a saúde passa por esta planta”!


Desde o primeiro segundo de projeção, o que salta aos olhos no mais novo longa-metragem da octogenária Helena Ignez é o cabedal de excelentes referências: o título, por exemplo, cita uma frase muito repetida no “Manifesto Antropofágico”, de Oswald de Andrade, e há uma reverência explícita à sexóloga Betty Dodson [1929-2020], passando, claro, pela utilização de imagens do ex-marido da diretora, Rogério Sganzerla [1946-2004]. Dele, são reaproveitadas cenas do projeto inacabado “Fora do Baralho”, em que ele e sua esposa passeavam pelo Deserto do Saara, em 1971… 

Aproveitadas internamente como lembranças dos protagonistas, estas filmagens servem como ponto de partida para que conheçamos Jarda Ícone (Helena Ignez) e Lírio Terron (Ney Matogrosso). Ela é uma ministrante de palestras sobre estimulação clitoriana e prazer feminino, enquanto ele é uma espécie de sociólogo holístico. Na primeira seqüência, ela o desperta, para que ambos passeiem por um “cemitério de memórias”, cuja disposição de espelhos e fotografias na areia evoca diretamente “As Praias de Agnès” (2008, de Agnès Varda), justificando o trocadilho sobrenominal. Jarda considera Lírio “o hippie mais chique que ela conheceu”, e eles compartilham uma amizade que reflete a intensa relação entre os intérpretes, através de várias parcerias fílmicas. 

Este primeiro segmento do filme, lúdico e mnemônico, conta com a participação da filha da realizadora, Djin Sganzerla, que interpreta a personagem Jarda quando jovem, no instante em que ela, sob delírio provocado por uma determinada substância alucinógena, é estuprada por dois soldados franquistas (vividos por Guilherme Leme e Rafael Rudolf). É a deixa para que, em momentos posteriores, a personagem fale em ressignificação, a partir da necessidade de transmutar situações traumatizantes em ensinamentos empoderadores… 

Trailer


Ficha Técnica

Título Original e Ano: A Alegria É A Prova dos Nove, 2023. Direção e Roteiro: Helena Ignez. Elenco: Ney Matogrosso, Amjad Milhem, André Guerreiro Lopes, Arthur Alves dos Santos, Barbara Vida, Dan Nakagawa, Danielly O. M. M, Djin Sganzerla, Fernanda D'Umbra, Fransérgio Araújo, Guilherme Gagliardi, Guilherme Leme, Helena Ignez, Jesus Cubano, Judite Santos, Julia Katharine, Lea Arafah, Mário Bortolotto, Michele Matalon, Negro Leo, Nill Marcondes, Rafael Rudolf, Samuel Kavalerski, Thaís de Almeida Prado, Vera Valdez. Gênero: drama. Nacionalidade: Brasil. Direção de Fotografia: Toni Nogueira, Flora Dias, Mirrah da Silva, Matheus da Rocha Pereira, Lucas Eskinazi. Montagem: Sergio Gag. Edição de Som e Mixagem: Damião Lopes/mixado no estúdio Euforia. Som Direto: Renato Garcia. Colorista: João Marcos de Almeida. Direção de Arte: Fabio Delduque. Figurino: Sonia Ushiyama. Arte Gráfica: Gustavo Godoy. Seleção Musical: Helena Ignez. Direção de Produção: Michele Matalon. Produção Executiva: Helena Ignez e Michele Matalon. Produção: Mercúrio Produções. Apoio: DGT Filmes, Filmes de Infiltração, Nomade Label, Near Foundation. Duração: 01h40min. Classificação Indicativa: 18 anos

Segue-se outro segmento, intitulado “Precisamos Falar Sobre Nós”: aqui, a diretora expande e compartilha as tendências artísticas e discursivas de seu séquito de colaboradores, que vai desde Negro Léo (como um padre pró-cannabis) até Júlia Katharine (que faz uma pequena participação versando sobre as dificuldades de ser uma mãe transexual). São vinhetas divertidas, mas que saturam pela redundância esquerdista, no que tange à repetição de jargões e símbolos facilmente reconhecíveis pelo público-alvo de sua obra. Qual a necessidade de pronunciar à exaustão aquilo que já é tão desgastado nos meios de comunicação assimiladores? 


O alter-ego da diretora responde através do elã masturbatório: o autoconhecimento torna imprescindível o resgate daquilo que parece óbvio, trazido novamente à tona via cotejo de experiências distintas. Para isso, diversas mulheres falam diretamente para a câmera sobre as suas relações íntimas com a descoberta ou o reconhecimento do orgasmo. E, neste sentido, os arroubos emocionais da personagem Sheila (Bárbara Vida) assumem um meandro inaudito, quando ela se apaixona perdidamente por um imigrante palestino (Amjad Milhem), que não faz sexo antes do casamento. Insistindo que essa é a sua religião (“Alá vê tudo!”), ele insere uma problemática interessante no roteiro, ao requerer a compreensão de suas especificidades culturais. 

Crédito de Imagens: Mercúrio Produções
A produção esteve na seleção da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e também passou por inúmeros outros festivais.

Não se sabe se voluntariamente ou não, mas o terceiro segmento do filme – que faz com que reencontremos Jarda e Lírio numa residência luxuosa, numa praia – parece aderir a uma autocrítica corrosiva das contradições de certos militantes: enquanto se deliciam com um banquete regado a champanha, os personagens escandalizam-se ao comentar que há muitas pessoas famintas no Brasil e milhares de pessoas em situação de rua no Estado de São Paulo. A cada dado lancinante, eles comem algo mui apetitoso e bebem mais um gole, enquanto o anfitrião da residência (André Guerreiro Lopes) – que se diz apolítico e assexual – é elogiado. Nos intervalos, Dan Nakagawa cantarola algo: “é preciso reinventar o amor/ como dizia Arthur Rimbaud”, rima ele, mais de uma vez, enquanto se tecem loas ao filósofo ‘pop’ sul-coreano Byung-Chul Han! 

No derradeiro segmento do filme, sobre “aquilo que será deixado”, Jarda Ícone e alguns atores de teatro executam uma performance metafílmica (“UTI na Praia” ou “A Xamã do Prazer”), em que todos os envolvidos ficam gritando odes orgíacas, compostas por Lou Andreas-Salomé [1861-1937]. O que a diretora quer dizer com isso? Que segue utilizando o seu próprio corpo como um instrumento de revolta (“as páginas são presas ao livro pela margem”) e que ela está consciente das limitações ativas de amigos (“não se pode conhecer o mundo sem sair de casa”), demonstrando claramente o lado político do qual ela está, bem como as instituições em que ela acredita. Mas nem sempre isso é suficiente para render um bom filme: aqui, a fórmula de ayahuasca utilizada como estímulo para os personagens azeda muito antes da dança coletivamente posta em cena e da bela canção executada por Ney Matogrosso (“Inominável”, também composta por Dan Nakagawa) durante os créditos finais. Uma pena!


Escrito por Wesley Pereira de Castro

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