A Estrela Cadente, de Fiona Gordon e Dominique Abel | Assista nos Cinemas

 
“Eu tenho a Síndrome de Lima, que é o inverso da Síndrome de Estocolmo”!

Apesar do casal de diretores Fiona Gordon & Dominique Abel já terem realizado um punhado de produções cinematográficas, a dupla é mais conhecida por suas incursões teatrais e circenses. Assistindo ao ótimo “A Estrela Cadente” (2023), percebemos como estas influências determinam a originalidade de sua linguagem, através de uma narrativa mui cadenciada, cuja introspecção é demarcada pelas músicas compostas pela dupla Birds on a Wire, formada pela brasileira Dominique Pinto e pela francesa Rosemary Standley. 


Não obstante o minimalismo das situações, o enredo deste filme é um tanto intricado, em sua proposta sinóptica. São duas tramas que se entrecruzam, aliás: de um lado, Boris (interpretado pelo próprio co-diretor Dominique Abel), um ex-ativista político disfarçado como ‘bartender’; do outro, Dom (também interpretado por ele), um homem amargurado por causa de uma tragédia familiar. O primeiro descobre casualmente a existência de seu sósia e, a partir disso, resolve trocar de personalidade, a fim de se esquivar da perseguição de Georges (Bruno Romy), um motorista de ambulância que ficara ferido num atentado a bomba, cometido por ele há vários anos… 


Na primeira seqüência, descobrimos que o título do filme refere-se a um bar, localizado nas cercanias do porto de Bruxelas. Georges sai na chuva, empunhando um revólver e um jornal antigo, e adentra o referido local, demonstrado saber do passado criminoso de Boris. Entretanto, o braço mecânico de Georges cai antes que ele possa disparar algum tiro. Ele pega a arma e o seu membro caído, e sai em disparada. Surge o primeiro chiste maroto, anunciando o tipo de humor com que nos depararemos, daí por diante: “ele perdeu um braço, mas as suas pernas estão bem”!


Trailer


Ficha Técnica
Título original e ano: L'étoile filante, 2023. Direção e Roteiro: Fiona Gordon e Dominique Abel. Elenco: Dominique Abel, Fiona Gordon, Kaori Ito, Philipe Martz, Bruno Romy, Mélanie Depuiset, Jimmy Assandri, Bertrand Landhauser, Céline Laurentie. Gênero: Drama, policial, comédia. Nacionalidade: França e Bélgica. Trilha Sonora OriginalDom La Nena e Rosemary Standley. Direção de Fotografia: Pascale Marin. Montagem: Julie Brenta. Produção:  Fiona Gordon, Dominique Abel, Christie Molia. Distribuição:  Pandora FilmesDuração: 98 min.

No bar, Boris vive com sua esposa Kayoko (Kaori Ito), que não demonstra qualquer escrúpulo em raptar Dom, fingindo estar contratando-o como garçom. Ocorre que Dom também é casado: em verdade, sua esposa não vive mais consigo, desde a perda da filha que tiveram. Ela chama-se Fiona (Fiona Gordon, a co-diretora) e trabalha como detetive particular. Num dia de pouquíssimo movimento, ela é contatada por uma cliente que relata o desparecimento de seu cachorro, coincidentemente muito parecida com a cadela cuidada por Dom. É a deixa para que ela descubra, de maneira tão fortuita quanto divertida, que seu ex-esposo fora cooptado pelos fugitivos políticos.


Há um sexto personagem que intersecciona estes dois ambientes: o assistente de Boris e Kayoko, Tim (Philippe Martz), que é completamente surdo, exceto quando utiliza um aparelho auditivo que não lhe permite identificar de onde provêm os sons. É mais um ardiloso subterfúgio para que os cineastas brinquem com variegados recursos sonoros, num estilo de humor que reverencia tanto o clássico Jacques Tati quanto o contemporâneo Roy Andersson. O trabalho do diretor de fotografia Pascale Marin é também excelente, na maneira como edifica hilários ‘tableaux’, repletos de detalhes cômicos. Vide a seqüência magistral em que Georges vai consertar o seu braço mecânico e ele é instalado de maneira invertida! 

Créditos: Courage Mon Amour e Monteur S'il Vous Plaît / Pandora Filmes
A produção passou pelo Festival de Locarno em agosto de 2023 e contou com estréia oficial na França em janeiro deste ano

Repleto de sutilezas, o humor dos diretores abre espaço para coreografias elaboradas e para inusitados e maravilhosos números de dança. A interpretação sobremaneira física de Kaori Ito é genial: seja nos seus involuntários impulsos de proteção – de origem pavloviana, segundo ela –, seja nas ‘gags’ que envolvem pitorescas movimentações de cabeça, braços e pernas. A sua desenvoltura como bailarina do cotidiano é impressionante: em alguns momentos, é impossível conter as gargalhadas, perante a habilidade com que ela se contorce,  em meio a atividades corriqueiras, como se nada estivesse acontecendo. Além de bastante original, é um filme também muitíssimo engraçado. Destacamos a cena em que, ao brincar de Banco Imobiliário com um vizinho, Boris, disfarçado como Dom, irrita-se ao alegar que “este é um jogo capitalista, à base de extorsões e alienação”. Alguém ousa discordar? 

No desfecho, o filme permite que os seus espectadores reconheçam um parentesco kaurismakiano: em meio ao ‘nonsense’ da persecução de Georges a Boris, são notadas potentes críticas da classe trabalhadora ao governo belga. Exemplo: quando um enfermeiro aparece sozinho para resgatar alguém que sofre um infarto e, quando perguntado porque ele não tem um ajudante, ele responde sem pestanejar: “por causa dos cortes de gastos”. Outro instante humoristicamente inspirado é quando, num quarto de hospital, Georges diz que “quer ver um médico”, e uma servente ocupada apenas o conduz a uma janela, e aponta para algo. Vemos diversos médicos deitados no chão, em greve, num pretexto ativo que retornará em momentos-chave, incluindo mais uma fuga de Boris, agora disfarçado como manifestante. Para quem nunca ouvira sequer falar destes cineastas radicados na Bélgica, sobremaneira criativos, eis uma oportunidade ideal para confirmar que eles são merecedores dos mais entusiasmados elogios e das láureas que receberam, em festivais alternativos: este filme é belíssimo! 

HOJE NOS CINEMAS

Escrito por Wesley Pereira de Castro

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