''- Porque é sempre a mulher que posa nua, e não o homem?
- Porque os homens é que são pintores, e não as mulheres!"
O questionamento acerca da objetificação do corpo feminino acontece num dos encontros iniciais entre o pintor Pierre Bonnard (Vincent Macaigne) e a empregada de uma loja de flores artificiais Maria Boursin (Cécile de France). Estamos em 1896 e ele fica imediatamente encantado por ela: explica-lhe que é comum que os artistas se apaixonem por suas musas. Ela retribui a sua afeição, mas há algo deveras problemático nessa relação, desde o seu estabelecimento contratual. Afinal, por mais justificado que seja pelo contexto biográfico, o machismo extremado do enredo é absolvido de maneira suspeitosa pelo diretor, que é também o roteirista do filme, em colaboração com Marc Abdelnour, com quem trabalhara em seus projetos anteriores.
Na trama, mesmo quando as mulheres são valorizadas tardiamente, elas tornam-se reféns de situações motivadas principalmente por ciúmes. Neste sentido, o roteiro, ao investir numa forçação de barra romântica, rende-se a cacoetes telenovelescos e não consegue suplantar as simplificações compositivas dos personagens. Falemos um pouco sobre eles, então, já que são personalidades verídicas: Pierre Bonnard [1867-1947], que ficou conhecido como “o pintor da felicidade”, destacou-se num grupo chamado Les Nabis [Os Profetas], cujo estilo era considerado pós-impressionista. Rejeitando os valores burgueses de sua família, ele chegou a estudar Direito, mas preferiu a carreira artística. Envolveu-se com várias das mulheres que pintava, entretanto; uma delas foi justamente a supracitada Maria, que se apresentou ao pintor como Marthe de Meligny. Casada com Pierre somente em 1925, após muitos anos vivendo com ele, ela também tornou-se pintora, mas sem a mesma repercussão do seu marido. Passou para a História como Marthe Solange [1869-1942].
No filme, que reduz a vida desses pintores à sua convivência doméstica, Pierre e Marta brigam e se reconciliam ao longo de quase cinco décadas: ela sabe dos casos extraconjugais dele, mas, como reitera a sua amiga Alice (Hélène Alexandridis), esposa do pintor Claude Monet (André Marcon), ela precisa resignar-se a isso. É algo comum a todas as mulheres, consentem. Porém, quando os adultérios vêm à tona, elas infelizmente atacam as outras mulheres, ao invés dos maridos mentirosos. A pianista Misia (Anouk Grinberg) é alvo freqüente da desconfiança delas, sob a desculpa de que negligenciou os seus dons musicais para casar por interesse financeiro, mais de uma vez. O motivo verdadeiro é outro: o roteiro não esconde o olhar masculino julgamental. E isso chega a irritar, em mais de uma situação!
Créditos de Imagens: Les Filmes Dukiosque, Umedia e Volapuk / Divulgação / Califórnia Filmes
''A Musa de Bonnard'' é o oitavo longa-metragem de Martin Provost. O multiartista tem inúmeros trabalhos como ator e escreveu cerca de onze roteiros.
Em pouco mais de duas horas de duração, as traições de Pierre e as crises de ciúmes de Marthe são compensadas por uma fotografia que reproduz, enquanto inspiração ostensiva, as paisagens impressionistas e por uma trilha musical fascinante, repleta de notas ‘in crescendo’, composta por Michael Galasso. Esses dois aspectos técnicos inebriam os nossos olhos e ouvidos, mas não conseguem suplantar os problemas enredísticos e eventuais anacronismos na reconstituição de época. Destacamos, no primeiro caso, as digressões referentes às questões familiares subexplicadas de Maria/Marthe, que é tratada de maneira hostil por sua mãe (Yveline Hamon), que associa às funções da filha, enquanto musa de pintor, a uma espécie de prostituição…
Levando-se em consideração aquilo que é mostrado no filme, os temores dessa mãe não são infundados: por estar apaixonada por Pierre, Marthe aceita tornar-se uma espécie de empregada doméstica para ele, não tendo sequer o direito à realização do desejo de maternidade, o que ela compensa através do cuidado devotado a dois cachorrinhos. Quando Renée (Stacy Martin), uma jovem que também posa para Pierre e para os pintores de seu grupo, surge, esta fica encantada ao conhecer Martha, dizendo-lhe que ela “é como se fosse um mito”, visto que foi eternizada através de várias pinturas do cônjuge famoso. Sem pensar muito, Marthe responde: “peço desculpas se não posso te dar muita atenção, pois o mito precisa cuidar das panelas”. A verossimilhança da contradição não esconde a pusilanimidade do diretor, ao registrar tal contradição comportamental: muitas vezes, quem admiramos em público merece o opróbrio, quando descobrimos o que é feito na intimidade!
Trailer
Ficha Técnica
Título original e ano: Bonnard: - Marthe & Pierre. Direção: Martin Provost. Roteiro: Martin Provost e Marc Abdelnour. Elenco: Cécile de France, Vincent Macaigne, Stacy Martin. Gênero: Drama, Biografia, Romance. Nacionalidade: França e Bélgica. Direção de Fotografia: Guillaume Schiffman. Trilha Sonora Original: Michael Galasso. Montagem: Tina Baz. Empresas Produtoras: Les Filmes Dukiosque, Umedia e Volapuk. Distribuidora: California Filmes. Produção: François Kraus e Denis Pineau-Valencienne. Duração: 122 min.
Por motivos óbvios, os espectadores que não conheciam o casal de artistas ficarão interessados em pesquisar sobre eles, ao término da sessão, já que as obras de ambos são marcantes em suas obsessões autorais: Pierre, claro, reproduzirá Marthe em mais de um terço de suas produções, o que é esclarecido no letreiro dos créditos finais, enquanto Marthe pintará frutas, rostos, flores e seus cachorrinhos, o que servirá como pretexto para um ótimo diálogo entre ela e o mentor de seu marido, Claude Monet, que, ao flagrar as telas guardadas no ateliê da casa de campo, pensando inicialmente tratar-se de quadros de Pierre, comenta que “o estilo dele simplificou: quando envelhecemos, tendemos a pintar somente aquilo que é essencial”. Ao reconhecer a autoria legítima destes quadros, Marthe deixa de ser uma mera dona-de-casa. É acolhida como artista, o que é também referendado por Pierre, depois que desiste de se casar com Renée, numa fuga frustrada…
Para que não se reclame que Martin Provost ignora as tensões referentes à supracitada objetificação do corpo feminino, há um instante em que Marthe alega que sua face é continuamente desfocada nos quadros, enquanto sua vagina e suas nadégas ficam em destaque. Tanto quanto acontece à protogonista, que é asmática, tais reclamações são rapidamente substituídas pelos aplausos indisfarçados ao talento de Pierre Bonnard, sufocando-a. Soma-se a isso o momento em que, numa exposição, uma admiradora agradece pela “maneira rara” com que ele registra a nudez feminina em diversas obras. Resta crer que o diretor realmente foi convencido pela grandiosidade dos sentimentos demonstrados pelo casal Bonnard, a ponto de validar aquele desfecho idílico. Enfatizar as boas intenções seria desastrosamente concessivo, em âmbito político-discursivo, neste caso?
HOJE NOS CINEMAS
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