Grande Sertão, de Guel Arraes | Assista nos Cinemas

 
A obra do autor mineiro João Guimarães Rosa, publicada em 1956, ''Grande Sertão Veredas'', revela a trajetória de Riobaldo, um homem perturbado por questionamentos constantes sobre a existência de Deus e o Diabo e que vive em um sertão repleto de jagunços em guerra. Riobaldo começa a nutrir um forte sentimento de amor por, ao que lhe parece ser, outro homem e tal fator o persegue por toda sua existência. O livro é um dos mais importantes romances da literatura brasileira que conta com um contexto regionalista - o cenário do sertão bahiano e o encontro deste com Minas Gerais. Bem recebido pela crítica e listado como ''clássico'', o texto se reverberou em outros universos como o da tevê (a minissérie homônima Global com Tony Ramos e Bruna Lombadi), foi transformado em HQ e também em Ópera e ganha agora releitura para o cinema, a partir do trabalho de Bia Lessa no espetáculo montado em 2017 com Caio Blat e Luisa Arraes, e que leva também o nome do livro. No entanto, este não é o primeiro longa-metragem que adapta a história já que a primeira versão levada as telas fora lançada em 1965 pelos irmãos Geraldo e Renato Santos Pereira com performances de Sônia Clara, Mauricio do Vale e Jofre Soares. Ainda assim, é nesta adaptação contemporânea que a audiência contempla o trabalho do diretor e roteirista Guel Arraes como um grande modernista ao passo que Arraes, em parceria com Jorge Furtado, engrossa o caldo da trama e atualiza a narrativa, assim como Baz Luhrman o fez em Romeu+Julieta (1996), adaptação do clássico de William Shakespeare.

O ''sertão'' aqui é visto como um cenário de favela. Sujo, cheio de mazelas, com uma miséria sem fim e a Deus dará. E este novo sertão é permeado por lutas entre bandidos e policiais, o que deixa a vida de todos por um fio. O grupo liderado por Joca Ramiro (Rodrigo Lombardi) está sempre atacando e tentando se defender do batalhão militar de Zé Bebelo (Luís Miranda). Diadorim (Luisa Arraes) e Hermógenes (Eduardo Sterblitch) são alguns dos homens de Joca Ramiro que seguem a risca a luta armada dentro do sertão. Inclusive, é a partir de toda a guerra e por conta da morte de inocentes que acontecem no lugar que o professor Riobaldo (Caio Blat reprisando seu papel) decide se juntar ao bando. Assim como no livro, Riobaldo narra a história e os acontecimentos, ainda que estes não tenham ordem linear. Os personagens ganham características essenciais e que se assemelham ao que se vê na obra literária, logo, Riobaldo acaba também se juntando ao grupo de Joca Ramiro pela amizade e amor que sente por Diadorim. Um afeto que é questionado a todo instante por este homem perdido, principalmente, pelo fato deste não entender como tem sentimentos por alguém do mesmo sexo - o que ao fim da trama se desemboca em um baita plotwist com a revelação de que Diadorim era então uma mulher transvestida de homem. Os conflitos chegam a tal nível, aliás, que ambos os lideres dos grupos, mesmo após uma certa trégua, são mortos pelos seus no campo de luta e a partir dai vinganças são pensadas a cada segundo.

Grande Sertão tem estreia para esta quinta-feira (06/06) e se faz valer pelas ótimas performances e caracterizações, além de trazer um espirito teatral vigoroso e que é abrilhantado por uma condução sagaz de um dos maiores diretores que o Brasil tem atualmente. É na certa um prato delicioso para quem leu o livro e uma ótima apresentação da história para quem não sabe nada dela. Um trabalho bem realizado e que evoca a empolgante alma do cinema brasileiro.

Trailer



Ficha Técnica  
Título Original e Ano: Grande Sertão, 2024. Direção: Guel Arraes. Roteiro: Guel Arraes e Jorge Furtado - Adaptação da obra literária "Grande Sertão: Veredas", de João Guimarães Rosa - gentilmente cedido por Nonada Cultural Ltda. – copyright. Elenco: Caio Blat, Luisa Arraes, Zé Bebelo, Rodrigo Lombardi, Eduardo Sterblitch, Mariana Nunes, Luellem de Castro, Vittória Seixas, Vitor Valle, Maria Eloiza. Gênero: Drama, Romance. Nacionalidade: Brasil. Direção de Fotografia: Gustavo Hadba. Direção de Arte: Valdy Lopes Jn.. Montagem/Edição: Fabio Jordão. Trilha Sonora Original: Beto Villares. Assistente de Direção: Kity Féo. Desenho de Som: Martín Grignaschi  (MPSE) (A3pS). Figurino: Cao Albuquerque e Diana Leste. Caracterização: Rosemary Paiva. VFX: Eduardo Schaal, Guilherme Ramalho, Hugo Gurgel. Realização: Ancine. Produtor de Elenco: Alonso Zerbinato. Produtor Associado: Edson Pimentel. Produção Executiva: Adriana König, Carol Scalice e Luciano Salim. Diretor de Produção: Paulão Costa. Produtores: Manoel Rangel, Egisto Betti e Heitor Dhalia. Produção: Paranoïd Filmes. Direção – 2ª Unidade/Produtora Artística: Flávia Lacerda. Coprodução: Globo Filmes. Distribuição: Paris Filmes. Duração: 01h49min.

O linguajar teatral/literário vem forte e pode desagradar um público mais popular ao mesmo tempo que pode conquistar os fãs de teatro e literatura brasileira. O esqueleto da peça de Bia Lessa tem força e delineia o filme com ótimas referências. A trama ganha um toque contemporâneo e até distópico e blinda seus personagens com tudo que já foi visto em outras adaptações, mas fortalece as caracterizações de cada um com uma roupagem instigante. A mudança de cenário ou de ''contexto'' do sertão é muito bem recebida e faz jus a ideia central da releitura. Temos aqui uma apresentação tão moderna quanto a original e os elementos que se usa para tal a fazem ser mais rica aos olhos de quem assiste.

Créditos: Divulgação / Paris Filmes / Helena Barreto / Gustavo Hadba e Ricardo Brajterman
A película passou pelo Tallinn Black Night Film Festival e Guel Arraes recebeu prêmio por melhor direção segundo a crítica

A adaptação traz de forma impar a questão da sexualidade da personagem central ''Diadorim'', que já foi vivida por Bruna Lombardi na versão para tv e agora é interpretada por Luisa Arraes com muita energia. Aliás, tem-se a oportunidade de um encontro ainda jovem de Diadorim com Riobaldo, performances de Vittória Seixas e Vitor Salles, respectivamente. A androginia e caracterizações das atrizes auxiliam com que nada ou ninguém conteste suas sexualidades, mas aos olhos do público, fica óbvio que a personagem é do sexo feminino. Contudo, as dúvidas e questionamentos de Riobaldo o levam a loucura por não comunicar ''ao amigo'' seu amor. E só estar perto do amado já o deixa feliz, de certa forma, pois este vive em total luta contra seus sentimentos. Os dois ainda tem relações com a mesma mulher, Nhorinhá (Luellem de Castro), e é quando Riobaldo não sabe se sente ciúmes de seus ''contatinhos sexuais'' ou do amigo que ama de todas as formas possíveis.

João Guimarães Rosa escreve sobre as guerras entre jagunços e aqui estas viram conflitos entre bandidos de favela e policiais corruptos. Luis Miranda tem atuação fenomenal como Zé Bebelo e Rodrigo Lombardi não fica atrás com seu Joca Ramiro cheio de si e líder revolucionário. No antagonismo, Eduardo Sterblitch dá um show de vilania com seu Hermógenes - o personagem chega a matar o líder do bando e cria para si um baita problema, pois junto a morte de Joca vem a revelação de que este é o pai de Diadorim. Isto faz com que uma rixa gigantesca se inicie entre o assassino e ''o'' filho do morto. Mariana Nunes e Suellem de Castro aparecem na trama com papéis opostos, a primeira apresenta a boa moça e sofrida e a segunda a paixão carnal. Ambas com arcos ligados ao Riobaldo de Caio Blat. O personagem dá ao ator duas fases, a jovem e a mais velho e amargurado. Barbudo, já quase no terceiro ato, o vemos profanar suas intensas dúvidas sobre o divino e também sobre seus sentimentos nunca revelados.

Créditos: Divulgação / Paris Filmes / Helena Barreto / Gustavo Hadba e Ricardo Brajterman
O elenco de ''Grande Sertão'' vem com muita diversidade e um time arrasador de atores, entre eles, Luis Miranda, Mariana Nunes, Eduardo Sterbitch, Luellem de Castro, Luisa Arraes, Rodrigo Lombardi e Caio Blat.

A produção tem uma fotografia alinhada a mensagem do filme e esta se contorna em cores frias e se esquenta em momentos específicos. Com a tela sempre cinza e também escura, vemos uma favela cheia, bagunçada e em caos. Os figurinos de roupas rasgadas também entram no clima ''Mad Max'' e tudo se completa. A trilha é voraz e aparece em momentos simbólicos.

Guel Arraes tem inúmeras séries de tevê e programas diversos no curriculo. Chega em breve as telas com a continuação de ''O Auto da Compadecida'', talvez seu filme de maior sucesso. A regionalidade é algo que ele sabe conduzir muito bem em suas produções e neste modernoso projeto traz uma ótica distinta de tudo que já se viu dele. Audacioso e cheio de competência, consegue manter o ritmo e cadência da história com muita genialidade.

Produzido pela Paranoid Filmes em co-produção com a Globo Filmes, o longa super indicado chega aos cinemas pela distribuidora Paris Filmes.

Avaliação: Três amores intensos ( 3/5).

HOJE NOS CINEMAS

Escrito por Bárbara Kruczyński

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1 comments:

Pseudokane3 disse...

Estava (e permaneço) muito desconfiado quanto a esta adaptação, mas o otimismo de tua apreciação estimula!

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