“O futuro, a gente não sabe o que vai ser; e o passado não dá sossego nunca”!
Configurando um exemplar de gênero na filmografia mato-grossense, ainda pouco difundida, este longa-metragem de suspense aproveita as especulações sobre as atividades de fugitivos nazistas no Brasil enquanto fundamento tramático: segundo o diretor, o argumento foi construído a partir de rumores que ele sempre ouviu, acerca da presença de criminosos alemães em regiões recônditas de seu Estado. Conforme é amplamente documentado, ex-militares hitleristas esconderam-se em cidades interioranas da América do Sul, o que serve como ponto de partida para uma investigação que é também antenada às prerrogativas identitárias da contemporaneidade.
A protagonista de “O Anel de Eva” (2023, de Duflair Barradas) é a personagem homônima, que encontramos caçando porcos selvagens, no prólogo. Furtiva, ela atira num deles, que guincha enquanto agoniza. Eva afasta-se e dispara mais uma vez, encarando diretamente a câmera, o que antecipa a sua força pessoal, à guisa de apresentação. Mais adiante, ela confessará que, somente após sacrificar aquilo que mais ama, pôde conhecer algo sobre si mesma, o que é corroborado num diálogo em que, ao negar moradia à sua sobrinha lésbica, Aurora (Laíze Câmara) – quando esta é rejeitada pelo pai conservador –, ela diz que isso prejudicaria a sua jornada de autodescoberta.
Eva é uma personagem forte, reiteramos, e isso é evidenciado desde a sua aparição inicial: após o crédito titular, sabemos que um latifundiário faleceu e deixou um testamento, concedendo a Eva parte considerável de suas terras. Descobrimos, em seguida, que o falecido era, em verdade, pai adotivo da protagonista, o que desperta a ira de seu enciumado irmão Marcelo (Luciano Bortoluzzi), que insiste que ele tem mais direito à herança que ela. Afinal, é o filho legítimo e, segundo ele, “a genética não falha”. É mais uma deixa para aquilo que Eva descobrirá nos contatos com pessoas mais velhas da região...
Créditos: Divulgação / Latitude Filmes e Audiovisual/ Elo Studios
A produção foi rodada em diversas locações da Grande Cuiabá e em Cáceres, Mato Grosso
Alegando não fazer questão de ser proprietária daquilo pelo que sempre zelou, visto que sempre foi mais próxima do pai que Marcelo, Eva recebe uma caixa contendo, entre outros objetos, um anel com uma inscrição datada de 1945 e fotos antigas. Deseja saber mais sobre a sua progenitura e, ao confrontar o enfezado Martin (Odilon Wagner), empregado de uma fazenda vizinha, suspeita que algo misterioso ocorreu ali. O preconceito que ele demonstra em relação às éguas mestiças é mais um indicativo da dimensão deste problema.
Por ser muito próxima de Aurora, que tem um caso amoroso com a sua professora de História, Isabella (Lis Luciddi), Eva é informada sobre a existência do ‘Lebensborn’ (em tradução literal, “fonte da vida”), que era o planejamento eugênico de concepção da raça ariana, a partir da fecundação massiva de mulheres alemãs, por homens filiados ao partido nacional-socialista. Ela suspeita que seja um desses bebês, mas isto é imediatamente negado pelo fato de que sua mãe era negra. Quem seria o seu pai, portanto? O que Martin está tentando esconder? Estas são perguntas que nortearão o enredo, daí por diante…
Trailer
Ficha Técnica
Título Original e Ano: O Anel de Eva, 2024. Diretor: Duflair Barradas. Roteirista: Eduardo Ribeiro e Pedro Reinato. Elenco: Suzana Pires, Odilon Wagner, Laize Câmara, Sandro Lucose, Regina Sampaio, Lis Luciddi, Luciano Bortoluzzi, Rafael Golombek, Amauri Tangará. Gênero: Suspense, Thriller,Drama. Nacionalidade: Brasil. Figurino: Mariana Milani. Produção: Latitude Filmes e Audiovisual. Produtor Executivo: Gisela Luiza Magri, Rafaella Lerer e Duflair Barradas. Distribuição: ELO STUDIOS. Duração: 01h30min.
Estréia em longas-metragens ficcionais do diretor, este filme possui um roteiro muito assemelhado às estórias de suspense infanto-juvenil que encontrávamos na coleção literária Vaga-Lume. Ou seja, trata-se de uma trama que instiga a nossa curiosidade e que progride de maneira interessante, mas que é ostensivamente atravessada por conveniências e causalidades, nem sempre verossímeis em seu oportunismo. O que só piora quando as aventuras românticas de Aurora e sua professora passam a ocupar espaço considerável na trama. A cena da discussão entre a garota e seu pai tem tudo a ver com o que os direitistas reclamam em seu tom de “lacração”, mas é deveras necessária na exposição de algo que ainda acontece com muita freqüência, sobretudo em ambientes rurais, como aquele em que se passa o filme.
Para além dos problemas narrativos evidenciados após uma inconvincente elipse, fundamental para o embate do desfecho, a interpretação introspectiva de Suzana Pires merece elogios pela maneira como consegue enternecer Eva, não obstante a maneira bidimensional com que ela é construída: é como se a personagem não tivesse vida pessoal antes da descoberta da caixa deixada por seu pai adotivo, o que é justificado pelo roteiro através da maneira abnegada como ela se dedicou às propriedades da família. Neste sentido, todas as frases em que ela celebra a importância de compreensão da própria trajetória convergem para a derradeira seqüência, quando ela pode finalmente viver uma vida que é efetivamente sua. A ameaça nazista, muitas décadas após o seu surgimento, aparece como uma metáfora valiosa na conjuntura política hodierna. Afinal, para que a extrema-direita se instaure, é essencial destruir as necessidades individuais. Em suas entrelinhas resistentes, o filme grita algo sobremaneira bem-vindo: não permitamos!
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