Orlando, Minha Biografia Política, de Paulo B. Preciado

 
“A vida começa antes do nascimento e termina muito tempo depois da morte”… 

Publicado em 1928, “Orlando” é a obra-prima literária de Virginia Woolf [1882-1941]. Chama a atenção, no romance, o modo como a conversão do protagonista masculino em uma mulher ocorre de maneira quase circunstancial, de modo que, para antecipar a análise realizada neste documentário, “seu destino é modificado radicalmente, mas não a sua personalidade”. Após um sono prolongado, Orlando, outrora homem, desperta como mulher e sequer se espanta. Afinal, estamos diante de “a mesma pessoa. Nada diferente. Apenas o corpo diferente”

Livro que causou forte impressão no acadêmico agora alçado à condição de diretor cinematográfico Paul B. Preciado – autor do célebre “Manifesto Contrassexual” –, “Orlando” é reencenado sob múltiplas facetas, neste excelente filme ensaístico, que expande as reflexões sobre não-binarismo e transexualidade aos píncaros da genialidade identitária. Esta produção só não pode ser considerada irretocável, pois, mesmo respeitando e compreendendo as nuanças do texto-base woolfiano, numa carta aberta do diretor à sua escritora, ele faz-lhe inúmeras cobranças “corretivas”, que se demonstram anacrônicas em face das exigências discursivas em pauta. O que não deixa de ser intencional, visto que, na proposta reivindicativa da obra, este procedimento dessacralizante faz completo sentido! 

Ao longo dos noventa e oito minutos de duração de “Orlando, Minha Biografia Política” (2023), diversos atores – inclusive, um cachorro – representam os personagens do livro, confundindo intencionalmente seus relatos pessoais com a trama original. E essa é uma das maiores forças do filme, no que tange à valorização dos sofrimentos e esforços daquelas pessoas, a fim de que sejam minimamente reconhecidas como elas são e/ou se sentem, para além dos espúrios julgamentos de caráter institucional e conservador. É um poderoso filme de protesto em cada filigrana! 

Créditos: Divulgação / Filme do Estação
O  filme de Preciado passou por inúmeros Festivais, entre eles, o de Berlin, onde ganhou o prêmio ''Teddy'' de ''Melhor Documentário'', recebeu menção especial do Júri e o prêmio da mesma bancada de ''Melhor Documentário''.

Em sua análise pessoal do romance, o diretor afirma que “a primeira metamorfose revolucionária é a poesia, que tem a possibilidade de mudar os nomes das coisas. A segunda é o amor”. Obedecendo à cronologia de eventos do livro, duas outras metamorfoses serão percebidas: aquilo definido como criolização, por uma das depoentes (visto que a mudança de gênero da personagem acontece num país estrangeiro); e a transexualidade propriamente dita, que unificará as pessoas biografadas em torno deste pioneiro relato literário, interpretado por muitos exegetas como um manifesto feminista. 

Num dos depoimentos mais emocionantes, um garoto de quinze anos, bastante avançando em seus tratamentos de transição de gênero, enfatiza que faz questão de definir a si mesmo como “rapaz trans”, no sentido de que, ao eliminar este prefixo acessório, excluiria também o que foi vivenciado até chegar àquele ponto de sua vida, algo que, definitivamente, ele não deseja obliterar. Em sentidos explícitos, o seu corpo é absolutamente político; tudo aquilo que ele é ou faz, idem! 


Não obstante ser um diretor estreante, Paul B. Preciado tem completo domínio cênico-ensaístico, selecionando intérpretes absolutamente expressivos, fazendo com que o seu elenco vista camisetas com frases contra a “ditadura binarista”, e utilizando uma trilha cancional deveras instigante, como a explosão musical do hino “Pharmacoliberation”, composto por ele próprio, ou a cena em que a potente “A Promise/T.D.O.V.”, na interpretação de The HIRS Collective, surge para anunciar a chegada de três entidades mágicas, responsáveis pela transição corporal de Orlando. O aproveitamento de imagens televisivas de “transexuais midiatizadas” – como o diretor refere-se às pioneiras na cirurgia de redesignação sexual, cujas entrevistas foram exploradas de maneira sensacionalista, no passado – consolida a maestria denuncista de sua adaptação cinematográfica, que é sobrmaneira distinta, mas tão excepcional quanto “Orlando, a Mulher Imortal” (1992, de Sally Potter), amplamente recomendável. 

Trailer


Título Original e Ano: Orlando, Minha Biografia Política, 2023Direção e Roteiro: Paul B. Preciado. Elenco: Paul B. Preciado, Oscar S Miller, Janis Sahraqui, Janis Sahraqui, Liz Christin, Elios Levy, etc. Gênero: Documentário. Nacionalidade: França. Trilha Sonora Original: Clara Deshayes. Fotografia: Victor Zébo. Edição: Yotam Ben-David. Design de ProduçãoAnna Le Mouël. Figurino: Caroline Spieth e Thomas GoudouProdução: 24 Images, ARTE, Les Film du Poisson - França. Distribuição: Filmes do Estação. Duração: 1h38m. 

De maneira audaciosa e mui aplaudível, Paul B. Preciado escala transexuais infantis para anteciparem o derradeiro segmento do filme, hipertrofiando a sua confiança nas mudanças legislativas e comportamentais trazidas pelas novas gerações. Ressignificando a trajetória de uma montadora hollywoodiana que perdeu o seu emprego, na década de 1950, depois que assumiu a sua transexualidade, estas crianças trans manipulam uma mesa de edição, até que a cineasta Virginie Despentes aparece caracterizada como juíza, concedendo os passaportes devidamente retificados a todas as pessoas que interpretaram alguma versão de Orlando, no enredo. A data para este evento é mui representativa, 11 de outubro de 2028, exatamente cem anos após a publicação do romance que serviu de incentivo personalístico a este maravilhoso documentário. A expressão “ficção política” é repetida muitas vezes durante o filme: na práxis de sua feitura, sobretudo. Uma obra assaz transformadora!


27 DE JUNHO NOS CINEMAS

Escrito por Wesley Pereira de Castro

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