quinta-feira, 13 de junho de 2024

O Rapto, de Iris Kaltenbäck | Assista nos Cinemas

 
“Compromisso é quando ambos caminham juntos, não quando apenas um segue o outro”!

Se adentrássemos a sessão deste filme sem ler a sinopse ou sem imaginar as situações que explicam o seu título, poderíamos achar que estamos diante de uma comédia romântica que emula, com ótimos resultados, a tradição ‘indie’ estadunidense. A condução agridoce do enredo é tão agradável, a interpretação de Hafsia Herzi é tão efusiva e a trilha musical de Alexandre de la Baume é tão edulcorada, que somos aproximados aos personagens de maneira quase cúmplice, como se estivéssemos testemunhando as ações de amigos queridos, em meio a ocupações corriqueiras. Até que o rapto acontece, e a mudança de tom é gritante em seu conteúdo, ainda que seja mantida a leveza formal. Um trabalho com segurança cênica impressionante, sobretudo por advir de uma diretora estreante!

De antemão, o recurso da narração em ‘off’ encanta pela demora na identificação da voz em pauta: trata-se de alguém que parece onisciente – em relação ao que acontecerá e às conversas íntimas entre as personagens –, mas que ao mesmo tempo, possui dúvidas quanto às motivações internas dos envolvidos. Até que, no desfecho, depois que sabemos de quem se trata, esta voz confessa: “sou apenas mais um espectador que se surpreende”, tanto quanto nós. Não é bem assim, mas esta explicação faz sentido na construção inteligente da narrativa. 


A protagonista deste filme é uma parteira dedicada ao trabalho – que, segundo ela, cuida mais das mães que dos bebês –, mas que não sabe como administrar os problemas de sua vida particular: logo no começo, a descobrimos em meio a uma câmera que vaga pelas ruas, enquanto a narração fala sobre “dias que se parecem uns com os outros”. Comenta-se que Lydia soa conhecida, e notamos que ela corre, carregando um bolo. É aniversário de sua melhor amiga Salomé (Nina Meurisse), e ela participará da festa. Convida o seu namorado Julien (Mathieu Perotto), mas este recusa, confessando que dormira com outra pessoa, terminando de supetão o relacionamento com Lydia. A narração comenta que “ela não pára de falar”, como se a culpa fosse dela. Voltaremos a este narrador, mais adiante…


Crédito de Imagens: : MACT Productions, Marianne Productions, Arte France Cinéma, JPG Films, BNP Paribas Pictures / Divulgação / Imovision
O longa francês tem na prateleira cinco premiações, entre eles, o "SACD'' da ''Semana da Crítica'' no Festival de Cannes de 2023. Além disso recebeu mais quatro indicações sendo duas dessas no ''Cesar Awards'', o Oscar Francês.


Desconcertada, Lydia comparece à festa de Salomé, mesmo assim, e, lá, descobre, de maneira circunstancial, numa conversa de banheiro, que a sua amiga está grávida. Algumas semanas depois, num exame pré-natal, ocorre um diálogo maravilhoso, confirmando a impressão supracitada de comédia romântica: em seu consultório, Lydia pede que Salomé se dispa, a fim de que ela possa realizar o exame ultrassonográfico, mas esta última brinca, exigindo que Lydia também se exponha genitalmente: “só mostro a minha se tu mostrares a tua”. O tom de cumplicidade é arregimentado, antes que ocorra a reviravolta acachapante! 


Extenuada após a sua rotina progressiva de trabalho, na qual ela tenciona sufocar as suas aflições, Lydia dorme num ônibus, e é acordada pelo motorista, um taciturno rapaz sérvio de nome Milos (Alexis Manenti), com quem passa a noite. Lydia tenta procurá-lo, em noites subseqüentes, mas o homem informa que não deseja manter compromisso, pede que ela apague o seu número de celular. Até que ambos  reencontrar-se-ão no elevador de um hospital, meses depois, quando Lydia carrega o bebê de Salomé nos braços. Mais sobre este enredo não pode ser comentado, daqui por diante: o que ocorre é surpreendente, malgrado esteja claramente evidenciado pela sinopse. 


Trailer

Ficha Técnica
  • Título Original e Ano: Le Ravissement, 2023. Direção: Iris Kaltenbäck. Roteiro Iris Kaltenbäck - com colaboradoções de consultoria de Alexandre de La Baume e Naïla  Guiget. ElencoHafsia Herzi, Alexis Manenti, Nina Meurisse, Younès Boucif. Gênero: Drama. Nacionalidade: França. Trilha Sonora Original Alexandre de La: Baume. Fotografia:Marine Atlan . Edição: Pierre Deschamps e Suzana Pedro. Direção de Arte: Anna Le Mouël. Figurino: Caroline Spieth. Empresas Produtoras: MACT Productions, Marianne Productions, Arte France Cinéma, JPG Films, BNP Paribas Pictures. Distribuição: Imovision. Duração: 01h37min.

Estabelecida a reviravolta anunciada, podemos analisar como a narração joga com as expectativas espectatoriais, visto que antecipa situações que não são mostradas no filme (um subseqüente processo judicial contra Lydia, por exemplo) e, ao mesmo tempo, evita julgar os personagens, por mais equivocados que sejam alguns de seus comportamentos. Afinal, além do crime estouvado de Lydia, a depressão pós-parto de Salomé também está em questão. Diz o narrador, numa reflexão anterior, sobre as duas amigas: “elas são como dois tubos interconectados: quando uma estava feliz, a outra estava irremediavelmente triste – e vice-versa”. Fica uma interrogação, porém: o roteiro talvez não tenha sido excessivamente indulgente em relação à culpabilidade de Milos, no que diz respeito ao modo como ele contribui para a amplificação do sentimento de abandono experimentado por Lydia? 


Uma resposta possível a tal questionamento instala-se na derradeira seqüência, através de uma tentativa inaudita de reaproximação, enquanto o filme, escancarando os seus pretextos dramáticos, possui instantes de extrema tensão, como a seqüência do parto de Salomé, em que chegamos a pensar que a criança não havia sobrevivido, por sufocantes instantes, ou tudo o que envolve o rapto titular. Despreparada para lidar com tantas rejeições – já que descobrimos que ela não tem família, pois sua mãe morrera no parto e não se sabe nada acerca de seu pai – Lydia endivida-se e dança, enquanto mente aos borbotões. A canção “Y Tu Te Vás”, da banda francesa La Femme, reaparece nos créditos finais, confirmando o equilíbrio supremo do filme entre o suspense dramático e o carisma tragicômico: “acostumo-me à minha solidão. É possível que eu melhore, quando tu te fores”. Deparamo-nos com um verdadeiro ‘tour de force’ emotivo, numa estréia mais que aplaudível para a diretora Iris Kaltenbäck: que venham os seus próximos filmes, fazendo favor. Ela é extremamente promissora! 

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