quinta-feira, 27 de junho de 2024

Salamandra, de Alex Carvalho | Quinta-Feira nos Cinemas


“ - Os pobres não gostam de fruta-pão…
- Sou como os pobres daqui, então”!


Apesar de ter o Brasil como cenário, o romance “La Salamandre”, de Jean-Christophe Rufin, ainda não foi lançado no país, paradoxalmente. Publicado na França, em 2005, podemos encontrar a edição para compra online (veja aqui) com a seguinte sinopse (em tradução livre para o português): “Catherine, cuja vida se organiza em torno do trabalho, com o ódio aos domingos, o auxílio da televisão, o carinho de um gato e o uso freqüente de soníferos, deu as costas à França para se estabelecer no Brasil. Indo além da condição de turista, ela troca o mundo das agências de viagens pelo das favelas. A violência com que as pessoas se tratam não permite que ela seja poupada”. A adaptação cinematográfica ora comentada respeita alguns elementos desta sinopse, mas oferece uma versão diferenciada dos eventos e personagens: sabemos bem menos sobre o passado de Catherine, por exemplo, ainda que ela seja melhor desenvolvida que seu jovem amante Gilberto, de quem descobrimos apenas que a sua mãe falecera por causa de um câncer… 


Sem que se tenha lido o romance original – o que é irrelevante, visto que cada suporte artístico possui as suas especificidades –, pode-se notar, neste filme, duas tônicas, que se substituem, progressivamente: de um lado, a potência erótica do romance entre Catherine (Marina Foïs) e Gilberto (Maicon Rodrigues); do outro, um suspense cujos meandros são intencionalmente inexplicados, lançando o espectador ao mesmo desamparo que toma de assalto a protagonista. O primeiro aspecto é muito interessante; o segundo, decepciona. 

No prólogo, acompanhamos Catherine em meio a experimentos gastronômicos que a deixam visivelmente incomodada. Fala-se sobre a importação de frutas-pão em abundância, no período colonial, a fim de que os escravos fossem alimentados com algo barato, mas estes desgostaram da comida imposta por outrem. “Hoje, esta fruta é uma iguaria”, explica o palestrante, numa seqüência que não reaparece, a posteriori, mas que deixa em evidência a culpa européia da protagonista, que viaja para o Brasil após o falecimento de seu pai. Em Pernambuco, ela reencontra a irmã, Aude (Anna Mouglalis), casada com um esnobe empresário (interpretado por Bruno Garcia). Será que, nas praias pernambucanas, ela reencontrará alguma alegria? 

Créditos de Imagens: Divulgação Pandora Filmes / N Filmes, san cinema, High Sea Production e Cinenovo.
O longa foi premiado no FestCine Araunda, em 2021, com o prêmio do Juri e o ator Maicon Rodrigues recebeu o ''Troféu Araunda'' de ''Melhor Ator''.


Numa determinada tarde, Catherine é interceptada por Gilberto, que pede para que ela passe protetor solar em suas costas e a convida para uma festa, no bar onde trabalha. Ela aceita. E, conforme esperado, ela apaixonar-se-á por ele, o que renderá diversas cenas de sexo simulado, em que a competente fotografia de Josée Deshaies realça a beleza do contraste entre as peles de Catherine e Gilberto: a dela, branca; a dele, preta. Obviamente, Aude não enxergará com bons olhos este relacionamento, o que faz com que Catherine resolva morar com seu amado. É o pretexto para que os estereótipos nacionais se instalem: a francesa será enganada e traída; o brasileiro a conquistará pelo carisma, mas fará com que ela mergulhe num rol de tormentos. Na mitologia antiga, a salamandra é o animal que supostamente consegue sobreviver ao fogo. Seria Catherine a representante humana deste anfíbio? 


Por durar quase duas horas, sem que isto seja requerido pela trama, o filme ostenta sinais directivos de cansaço, em sua segunda metade: a previsibilidade das situações que confirmam o mau caráter de Gilberto, quiçá associadas à sua vida sofrida (outro estereótipo reprovável), desperdiça a ambigüidade do outrora mencionado sentimento de culpa que atravessa a melancólica Catherine. Mais velha e endinheirada que Gilberto, ela o presenteia com uma motocicleta e aceita a sua idéia de alugar um imóvel, com vistas à construção de um empreendimento festivo. Quanto mais Aude a aconselha, mais Catherine renega a sua preocupação, principalmente ao constatar a maneira preconceituosa com que os empregados do prédio em que ela estava instalada tratam Gilberto, dizendo que “somente moradores podem nadar na piscina” ou acusando-o de mexer nos armários da família francesa. 

Trailer

Ficha Técnica
Título Original e Ano: Salamandra,2021. Direção e roteiro: Alex Carvalho, a partir do romance La Salamandre, de Jean-Christophe Rufin. Colaboração na adaptação: Rita Toledo, Nelson Caldas Filho, no Brasil. Alix Delaporte e Thomas Bidegain, na França.  Elenco: Marina Foïs, Maicon Rodrigues, Anna Mouglalis, Bruno Garcia, Allan Souza Lima, Buda Lira, Suzy Lopes. Gênero: Drama. Nacionalidade: Brasil, França, Alemanha, Bélgica. Direção de Fotografia: Josée Deshaies. Trilha Sonora Original: Jam da Silva. Direção de Arte: Juliana Lobo. Desenho de som: Edson Secco. Montagem: Joana Collier e Agnieszka Liggett. Empresas Produtoras: N Filmes, san cinema, High Sea Production e Cinenovo. Coprodução: Nois Production, Cine+, Canal Brasil e Telecine. Apoio: Projeto Paradiso e Instituto Rouanet. Produção: Alex Carvalho, Tiago Carneiro Lima, Sven Schnell, Patrick André, Julie Viez. Coprodução no Brasil: Adriana Rouanet e Paula Cosenza. Distribuição: Pandora Filmes. Duração: 116 min.
O elenco do filme é deveras competente (incluindo Allan Souza Lima, como o vilanaz Pachá) e a já citada fotografia obtém captações fascinantes dos lusco-fuscos recifenses e do carnaval de Olinda. A trilha musical de Jam da Silva é também elogiável, na maneira como traduz em acordes os sentimentos intensificados de Catherine, cada vez mais obsessiva em sua paixão por Gilberto. Mas o desfecho do filme é pusilânime, em seu anticlímax, não obstante ecoar algo que parece ocorrer no romance que deu origem ao roteiro: a disposição da protagonista em reinventar-se no Brasil, a despeito de suas cicatrizes físicas e emocionais… 

O que mais incomoda no filme é um indisfarçado pendor classista, que faz com que os estereótipos que os personagens se tornam, no desfecho, revelem-se ainda mais problemáticos, em termos de julgamento moral. Ainda que o roteiro, escrito pelo próprio diretor, opte por respeitar a perspectiva narrativa de Catherine, em viés objetivo, sua credulidade passional é desenvolvida como uma fraqueza, culminando na tragicidade anunciada do desfecho. A mudança declinante de tom ocorre num instante quase circunstancial, em que, ao esperar Gilberto retornar da cozinha, onde fôra buscar um frasco de pimenta, Catherine preocupa-se excessiva e subitamente, gritando o seu nome, sobremaneira preocupada, poucos segundos depois que ele se afasta. Daí para a frente, o filme chafurda no tédio e na banalização dos perigos urbanos, tão advertidos por Ricardo, o marido de Aude. É triste ter que concordar com um personagem tão ignóbil! 


HOJE NOS CINEMAS!

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