“O grande talento é o de não aceitar a derrota, o de ser forte”!
Deveras histriônico, verborrágico e expressivo, Kleber Mazziero justifica todos esses adjetivos a partir de uma extrema erudição e, mais importante que isso, através de uma paixão legítima pela Música. A montagem do filme coliga diversos depoimentos do maestro, em que ele ratifica as suas falas e demonstra uma coerência ímpar, em relação àquilo que rememora e ao que compartilha com as platéias. Ele vai e volta para Cuba, sendo o documentário o fruto de tudo o que ele aprendeu com essa experiência, fazendo questão de compartilhar, imediatamente. O segmento dos abraços é emocionante!
Em Cuba, Kleber torna-se obcecado por um pianista mui talentoso, de nome Yanner Falcón, a quem convida para executar as suas sonatas autorais. Numa demonstração de extrema habilidade educacional (“ensinar através do exemplo”), Yanner convida dois de seus alunos, Liah Rivero e Angel Jiménez, para auxiliá-lo na diligência e, ao longo do filme, as habilidades destes músicos são entremeadas pelas entrevistas e conversas com o maestro.
Créditos de Imagens: Divulgação / Kaza Véia Produções e Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos - ICAIC.
Atuando como uma mistura de guia de viagem com turista assaz curioso, Kleber interroga os moradores – sobretudo, os bodegueiros – acerca das peculiaridades comerciais do país, tendo em vista o supracitado bloqueio imposto pelos EUA. Descobrimos, por exemplo, que os habitantes cubanos devem obter as mercadorias de que precisam através da obediência a uma caderneta que limita a aquisição dos produtos, que não devem ultrapassar uma quantidade estipulada, a cada dois meses. Ele explica que, a despeito disso, os produtos subsidiados pelo Estado são baratos, mas que estes mesmos produtos são vendidos por preços astronômicos no mercado clandestino. Ele visita açougues, padarias, farmácias, todos eles com as prateleiras quase vazias. Mas o tom do documentário está longe de ser pessimista!
Ao debater de maneira pedagógico-filósofica com educadores, musicólogos e representantes institucionais do país, Kleber Mazziero justapõe as suas crenças pessoais aos discurso pró-revolucionário dos entrevistados. Por mais que se sofra por causa do bloqueio econômico, eles evitam pensar nesta mazela proveniente da ganância exterior, preferindo enfatizar as qualidades privilegiadas dos sistemas públicos de Educação e de Saúde, na ilha. Uma das professoras orgulha-se das medidas históricas de alfabetização do governo socialista e isso encontra eco no modelo platônico tripartite através do qual o maestro vislumbra a educação: além do ensino propriamente dito, deve-se investir nos esportes e nas artes. E, não por acaso, Cuba é uma referência internacional nestas categorias.
Trailer
Ficha Técnica
Título Original e Ano: Sin embargo, Uma Utopia, 2024. Direção: Fabiana Parra. Participações de: Kleber Mazziero, Yanner Falcón, Liah Rivero, Angelo Jiménez, Adela Rascón, Daniel Martínez, Rosa García, Ana Tamayo, Nancy Chacón e Fernando Ferrer. Gênero: Documentário. Nacionalidade: Brasil. Fotografia: Gabo Martines. Direção de arte: Gabriella Lira. Direção de áudio: Kauã Bella. Coprodutoras: Kaza Véia Produções e Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos - ICAIC. Duração: 90 minutos. Idiomas: Português e Espanhol.
Os momentos mais interessantes do filme, em razão da maneira espirituosa e apaixonada com que o maestro fala sobre a musicalidade brasileira, são quando ele conversa com o cantor Fernando Ferrer e com a pianista Rosa García. Idem para o instante em que, ao se comparar as diferenças constitutivas entre a rumba e o samba, faz-se uma poderosa reflexão sobre quão definitivo foi o extermínio dos povos originários da América Central, o que dirimiu a influência indígena nos ritmos cubanos. Além disso, uma pesquisadora observa que, enquanto Cuba acolheu, durante a terrível época da escravidão, negros oriundos de Nigéria e da parte setentrional de Congo, o Brasil recebeu principalmente angolanos e moçambicanos. Tudo isso explica o porquê de essa duas nações colonizadas por europeus, Cuba e Brasil, serem tão parecidas e, ao mesmo tempo, tão diferentes. Aprendemos bastante ao testemunhar as conversas que Kleber Mazziero conduz com tamanha empolgação!
Obviamente, uma crítica sobre este filme seria imprecisa e/ou sobejadamente condescendente se não comentasse o estilo televisivo da montagem, mais ou menos como se fosse o material adicional de um hipotético DVD do concerto central. Mas investir exageradamente nestes aspectos seria o mesmo que incorrer na inversão de perspectivas que acontece quando um motorista de táxi, em Cuba, ganha mais, em termos proporcionais, que um médico. Isso seria priorizar o ditame de ordem capitalista, ao invés de valorizar o que realmente importa, a educação. A partir disso, outra frase brilhante do maestro vem à tona, quando ele associa o talento à capacidade de admitir que “mesmo quando o outro ganha, não se pode perder para o outro”. O que está longe de ser uma exortação à competitividade, mas, pelo contrário, a assunção de que todos são harmonicamente “comuns”, pois visa-se à comunidade. “Não basta possuir talento, precisa-se também da dedicação”, enfatiza ele, em mais de uma oportunidade, ao que uma das professoras com que ele interage acrescenta: “ser culto equivale a ser livre”. O brilhantismo jogo de palavras do título que o diga: conforme ouvimos em diversas frases dos depoentes, “sin embargo” é uma expressão idiomática corriqueira, que significa algo como “porém”. Que o bloqueio estrangeiro acabe, como o maestro pede novamente, ao final. Viva a utopia!
A produção tem estréia exclusiva nos cinemas de São Paulo.
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