Tudo O Que Você Podia Ser, de Ricardo Alves Jr. | Assista nos Cinemas
“Tu vais desistir do Doutorado para ficar lavando as cuecas do ‘boy’”?!
Quando lemos a sinopse deste filme, vem-nos à cabeça, imediatamente, “O Céu Sobre os Ombros” (2011, de Sérgio Borges), visto que, além de ser um documentário mineiro que também possui seqüências dramatizadas, uma das personagens reais, acompanhada pela equipe, era uma transexual mestranda. De fato, há algumas similaridades entre os projetos, mas “Tudo o que Você Podia Ser”, de Ricardo Alves Jr., investe numa modalidade mais homogênea em relação ao modo como as personagens interagem: no filme mais recente, as trajetórias são convergentes, pois conhecemos quatro amigas que resolvem passar a madrugada juntas, divertindo-se, a fim de comemorar a viagem de uma delas, aprovada num Vestibular – “em terceiro lugar”, enfatiza – para Ciências Sociais, na cidade de São Paulo. E se estamos utilizando os pronomes no feminino, nesse texto, é porque é assim que elas se tratam no cotidiano.
As filmagens ocorrem em Belo Horizonte: Aisha Brunno visita as suas amigas, oferecendo roupas que não conseguirá levar na viagem e confraternizando com elas, como vem fazendo há muito tempo. À medida que a trama avança, vamos conhecendo os dilemas e prazeres de cada uma delas, sendo que as peripécias festivas do quarteto são divertidíssimas. Sentimos como se elas fossem nossas companheiras, de tão íntimo que é o processo de captação daqueles instantes!
A película foi premiada na 25ª edição do Festival do Rio e venceu o prêmio de melhor filme segundo o público na edição mais recente do Festival MIXBRASIL
A melhor amiga de Aisha é Bramma Bremmer, uma atriz que, no filme, comemora o lançamento vindouro de um livro de poesias, escritas em meio à lisergia. Num registro dramático paralelo à alegria de Aisha, que afirma realizar um sonho, testemunhamos Bramma assumir que é soropositiva (indetectável) e ser menosprezada pela mãe (interpretada por Docy Moreira), que a expulsa de casa, ao declarar que ela não é “mais que o filho que eu tive”. Para piorar, Bramma protagoniza uma dolorosa seqüência de assédio moral, quando é ofendida e ameaçada por três homofóbicos, num ônibus. Apesar de tudo isso, ela faz questão de sorrir, sempre que possível!
Igui Leal, destacada por ser a ruiva do grupo, foi aprovada recentemente num Doutorado na Alemanha, mas ainda não sabe se terá direito a bolsa, o que serve como pretexto para que ela mencione os problemas que a CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – enfrentou durante o (des)governo bolsonarista. Ela é a motorista oficial do grupo e, numa cena divertidíssima, entra numa rodovia destinada apenas a veículos coletivos, contrariando os conselhos de Aisha. Ri-se bastante nesse momento, inclusive pela maneira cúmplice como elas lidam com as adversidades!
Completando o grupo, temos Will Soares, espirituosa ‘perfomer’ negra, que costuma se vestir de vampira nas festas e parodiar canções famosas, adicionando versos eróticos às letras. É aquela que possui os contatos com os fornecedores de cocaína, talvez por morar na região mais periférica da cidade. E, tanto quanto as suas amigas, não perde o rebolado no dia a dia, mesmo lidando com a falta de dinheiro, com as oportunidades escassas de trabalho ou com o racismo indisfarçado, conforme sofreu numa viagem que fez a Blumenau, em Santa Catarina. O modo como estas quatro pessoas se comportam é um exemplo benfazejo de alegria e de aceitação à vida, para além do que acontece rotineiramente…
Trailer
Ficha Técnica
Título Original e Ano: Tudo O Que Você Podia Ser, 2024. Direção: Ricardo Alves Jr.. Roteiro: Germano Melo. Elenco: Aisha Brunno, Bramma Bremmer, Igui Leal e Will Soares. Participações Especiais: Docy Moreira, Renata Rocha e Sitaram Custódio. Gênero: Comédia, Drama. Nacionalidade: Brasil. Direção de Fotografia: Ciro Thielmann.Direção de Arte: Luiza Palhares. Figurino: Luiza Palhares e Luiz Dias. Montagem: Lorena Ortiz. Som Direto: Fabricio Lins. Trilha Sonora Original: Barulhista. Canção-tema: Coral. Produção: Julia Alves.Direção de Produção: Nina Bittencourt. Empresas Produtoras: Entrefilmes e Sancho & Punta. Distribuição: Vitrine Filmes. Duração: 84min.
Numa das seqüências iniciais, quando Aisha caminha sozinha pelas ruas, conversando com as amigas através de ligações telefônicas, a canção titular, composta pelo grupo Clube da Esquina, tem os seus acordes executados, de maneira incidental, como se estivesse implantando a tônica do filme, no que tange à abordagem efusiva do relacionamento entre as pessoas retratadas. Nos créditos finais, a mesma canção irrompe, numa versão cantada pela artista baiana (radicada em Minas Gerais), transexual e não-binária Coral, reiterando aquilo que é praticado pelas quatro amigas, ao longo de deliciosos oitenta e três minutos: “Mas não importa, não faz mal/ Você ainda pensa e é melhor do que nada/ Tudo o que você consegue ser”!
Terminada a sessão, o espectador sente-se convocado a seguir os respetivos perfis das personagens reais no Instagram e pôr em prática o júbilo resistente levado a cabo por estas amigas tão expressivas, inteligentes e bem-humoradas. “Tudo o que Você Podia Ser” é um filme que faz jus à exortação de seu título, demonstrando que, a despeito dos maus tratos, perseguições e não-reconhecimento imediato de nossos talentos, anseios duradouros podem ser realizados e amizade é a melhor coisa que existe. Um filme-testemunho, deveras necessário nos dias atuais, em que precisamos explicar aos neofascistas infiltrados em nosso convívio situações tão óbvias, como o fato de que toda e qualquer pessoa deve ser livre para exercer a sua sexualidade. Dentre aquilo que aprendemos com as ações destas sobreviventes purpurinadas, descobrimos que vibradores de plástico são ótimos para movimentar o jogo de Verdade ou Conseqüência, por exemplo. Vamos pôr isso em prática?
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