A Flor do Buriti, de João Salaviza e Renée Nader Messora

 

“Hoje em dia, ninguém fica mais pelado na festa: todo mundo quer usar cueca e calção. Não é a mesma coisa!


Responsáveis pelo também premiado “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos” (leia aqui), lançado em 2018, o casal de diretores deste filme, João Salaviza e Renée Nader Messora, é, mais uma vez, mui exitoso no respeito à temporalidade particular da narrativa Krahô. Em determinado momento, um dos personagens diz que “essa história não tem fim”, permanece em aberto, em pleno curso, após o desfecho, através do recurso à lógica cíclica dos nascimentos que preservam a memória dos ancestrais: os nomes de parentes que foram assassinados em épocas anteriores são dotados de esperanças transformadoras, quando reutilizados em crianças recém-chegadas ao mundo, que choram perante esta benfazeja responsabilidade…

Na abertura, um belíssimo enquadramento em ‘contra-plongée’ mostra um cacique recitando o canto titular, enfatizando a importância ritualística de “colher a flor”, sendo que “a do buriti é vermelha, enquanto a do urucum é púrpura”. Demora-se um pouco até que percebamos a instalação da trama: é essencial, antes disso, compreender o equilíbrio entre as espécies que compartilham aquele espaço, no norte do Estado de Tocantins. É onde vive Patpro (Ilda Patpro Krahô), que se prepara para viajar até Brasília, onde participará de uma manifestação em prol da demarcação das terras pertencentes aos povos originários do Brasil – estimulada, entre outros, pelas falas contundentes da maranhense Sônia Guajajara, às quais ela assiste, muitas vezes, na tela de seu telefone celular. 


Patpro está apreensiva, entretanto; sua filha Jotàt (Solane Tehtikwyi Krahô) tem pesadelos cada vez mais intensos, e, por conta disso, requer um colchão, ciente de que, assim, dormiria melhor. Patpro opõe-se veementemente a esta solicitação, dizendo à filha que foi assim que seu pai se tornara um “caçador de supermercado”, rejeitando os ensinamentos e práticas repassados de geração a geração por seu povo. A garota compreende a argumentação, mas precisará lidar com os passeios noturnos de seu espírito pela mata, enquanto ela se deita no chão. A direção fotográfica de Renée Nader Messora é impressionante! 

Trailer


Ficha Técnica 

Título Original e Ano: A Flor do Buriti, 2023. Direção: João Salaviza, Renée Nader Messora. Roteiro: João Salaviza, Renée Nader Messora, Ilda Patpro Krahô, Francisco Hyjnõ Krahô, Henrique Ihjãc  Krahô. Elenco: Ilda Patpro Krahô, Francisco Hyjnõ Krahô. Gênero: drama. Nacionalidade: Brasil, Portugal. Direção de Fotografia: Renée Nader Messora. Direção de Arte: Ángeles Frinchaboy, Ilda Patpro Krahô. Direção de Produção: Isabella Nader Messora. Som Direto: Diogo Goltara. Desenho de Som: Pablo Lamar. Montagem: Edgar Feldman. Produção: Ricardo Alves Jr., Julia Alves. Distribuidora: Embaúba Filmes. Duração: 124 min.
Jotàt é convidada, mais de uma vez, a também participar da viagem a Brasília, mas ela recusa, pois tem medo de encontrar os ‘cupē’, que são os homens brancos de temperamento cobiçoso e violento. Estes tentam invadir a aldeia onde o povo Krahô vive, a fim de utilizar as terras para criação de gado. Jotàt, inclusive, flagra alguns deles roubando araras, para comercializar nas cidades, além de se deparar com o gado alheio em várias oportunidades. Junto aos seus amigos, ela age: “vamos espantar esses bois, senão eles invadirão a horta de minha mãe e destruirão tudo”. Pena que não é tão simples… 

Em dado momento, o tio de Jotàt, Hyjnõ (Francisco Hyjnõ Krahô) lembra com saudade de quando ele e seus companheiros eram puxados pelos cabelos, enquanto enfiavam pimenta e cocô de cachorro em suas bocas, como preparativos para a festa do Kêtuwajê. É quando um ‘flashback’ se instaura, e testemunhamos a reconstituição de um extermínio ocorrido em 1940, quando os vaqueiros dizimaram a maioria dos ancestrais destes personagens reais. Daí por diante, o roteiro salienta a importância da participação de Patpro no protesto que reúne várias comunidades indígenas em Brasília, havendo explícitas reprimendas contra o ideário pérfido do período bolsonarista. É um filme que acredita efetivamente na participação política – sobretudo das mulheres –, a ponto de Patpro cogitar que, um dia, uma representante de seu povo pode mesmo chegar a ser presidenta do Brasil. Que isso, de fato, aconteça! 

Crédito de Imagens: Divulgação / Embaúba Filmes / Entrefilmes, Karõ Filmes
A película ''A Flor do Buriti'' passou pelo Festival de Cannes, em 2023, e recebeu premiação coletiva da Mostra ''An Certain Regard''.

Tantos os intérpretes de Patpro e Hyjnõ quanto o protagonista do filme anterior, Henrique Ihjãc Krahô, junto aos diretores, são os roteiristas desta produção, o que explica a imersão bem-sucedida naquele universo cultural tão fascinante e lamentavelmente sujeito à sanha criminosa dos pecuaristas. As cenas do massacre são aflitivas, mas isso é narrado não com vistas à comiseração, e sim à demonstração de que a sobrevivência resguarda também a continuidade, conforme acompanhamos a partir da avó de Hyjnõ, Crowrã, ainda criança, que se esconde e foge. O nome dela, além de ser o título internacional do filme, é também o da esposa grávida de Hyjnõ, que dá a luz na derradeira seqüência, enquanto Patpro permanece em Brasília e um canto ancestral irrompe novamente na tela. O povo Krahô há de resistir!

Ao término da sessão, notamos que a temporalidade desta obra conjuga de maneira hábil os receios, prazeres e esperanças daqueles personagens, que, por obrigações exteriores, precisam sincronizar os seus hábitos específicos com as imposições “civilizatórias”, sendo marcantes as situações em que Patpro interage com a professora Débora (Débora Sodré), a quem leva pedaços de tecido, e recebe conselhos, bananas e até mesmo um ‘pendrive’ com as canções de Zélia Barbosa, referentes ao disco “Sertão & Favelas” [lançado em 1968 e posteriormente reintitulado “Brazil: Songs of Protest”], ouvidas por elas num instante de calmaria, antes da viagem. Trata-se, portanto, de mais um trabalho magistral dos realizadores, que converte os integrantes do povo Krahô em narradores da própria história, e não em meros objetos da mesma. Eles são respeitados enquanto sujeitos ativos e criativos. Filmaço! 

HOJE NOS CINEMAS

Escrito por Wesley Pereira de Castro

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1 comments:

Anônimo disse...

Com certeza um filme lindo. Irei vê-lo!!

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