“Para os reis e príncipes, a resposta do papa é sempre a mesma: ‘non possum’!”
Iconoclasta e anti-institucional desde o seu primeiro longa-metragem – o arrebatador “De Punhos Cerrados” (1965) –, o octogenário Marco Bellocchio realiza mais um trabalho contundente e sumamente politizado em “O Seqüestro do Papa” (2023), conjugando questões emocionais e polemismo histórico, tanto quanto encontramos em ótimos títulos, como “Diabo no Corpo” (1986), “Bom Dia, Noite” (2003) e “Vencer” (2009), para ficar em apenas alguns. Partindo, mais uma vez, de um caso real, ele gradualmente faz com que um drama familiar desencadeie um conflito de âmbito nacional. Afinal, em seu elã marxista, cada ato particular é também político.
O enredo deste filme inicia-se em 1851, quando testemunhamos algo que, mais à frente, será indicado como um batismo de um bebê, feito à revelia dos pais da criança. Esta cerimônia clandestina ocorre na residência de uma família judia bolonhesa, os Mortara. Seis anos depois, um oficial de justiça invade o lar de Salomone, apelidado Momolo (Fausto Russo Alesi), e Marianna (Barbara Ronchi), alegando que um de seus filhos, Edgardo (então interpretado por Enea Sala), precisa ser levado para a sede da Igreja Católica, em Roma, já que ele foi convertido ao Catolicismo. O casal insiste que não reconhece este batismo, que em nenhum momento o requereu, mas o oficial é irredutível em sua decisão…
Após a descoberta de que o batismo em pauta fôra praticado por uma ex-empregada dos Mortara, Anna (Aurora Camatti), demitida por ter sido acusada de roubo, Momolo busca auxílio entre as influências judaicas da época, enquanto Edgardo, prestes a completar sete anos de idade, é pessoalmente adotado pelo papa Pio IX (Paolo Pierobon), que alega prestar contas somente a Deus. Trata os seus subjugados com arrogância e prepotência, principalmente quando descobre que é satiricamente descrito pela imprensa como “o papa seqüestrador”. Deveras poderoso, ele cativa Edgardo ao tratá-lo com gentileza, enquanto o menino é recomendado por seus colegas de confinamento a ser obediente.
Trailer
Ficha Técnica
Título Original e Ano: Rapito,2023. Direção: Marco Bellocchio. Roteiro: Marco Bellocchio, Susanna Nicchiarelli e Edoardo Albinati. Elenco: Paolo Pierobon, Fausto Russo Alesi, Barbara Ronchi, Enea Sala. Gênero: Drama. Nacionalidade: Itália, França, Alemanha. Direção de Fotografia: Francesco Di Giacomo. Trilha Sonora: Fabio Massimo Capogrosso. Montagem: Francesca Calvelli, Stefano Mariotti. Produção: Beppe Caschetto, Paolo Del Brocco, Simone Gattoni. Empresas Produtoras: IBC Movie, Kavac Film, Rai Cinema. ARTE, Canal+, Arte France Cinéma,Ciné, Film- und Medienestieftung NRW. Distribuidora: Pandora Filmes. Duração: 134 min.
Temendo precisamente que o garoto se resigne à nova fé, os representantes judeus da cidade de Bolonha enviam cartas a lideranças de todo o mundo, transmitindo a indignação relacionada ao crime cometido pelo sumo sacerdote do catolicismo. Na tela, letreiros rubros indicam os anos em que os eventos aconteceram, designando a mudança de tom que atravessa o filme: sentimental no início, com seqüências impactantes em que pai e mãe sofrem por causa da separação do filho querido, mas logo convertido em petardo histórico, que denuncia os desmandos cometidos em nome da associação entre fé e Estado, havendo espaço para a denúncia de um inquisidor local, num julgamento pioneiro que põe em xeque a sua autoridade. Ele é inocentado, mas o advogado de Momolo tenta convencê-lo de que aquela derrota jurídica representou algo importantíssimo. De fato, logo as ruas de Roma estarão tomadas por revolucionários radicalmente contrários ao papa supracitado!
Para a efetividade da mudança de tom desta encenação, a grandiloqüente trilha musical de Fabio Massimo Capogrosso serve de vital importância. Ele já havia trabalhado com o cineasta na minissérie “Noite Exterior” (2022), de modo que compreendeu que a sua função não seria a de referendar sentimentos evidentes, como ocorre em dramas convencionais, mas sim a de fazer com que o espectador perceba a carga ideológica da produção a que assiste, em que não é casual que um determinado personagem – Riccardo Mortara (Samuele Teneggi), irmão de Edgardo – afirme de maneira peremptória que “não acredita em nenhuma religião”, apesar de sua rigorosa criação judaica. Este é um posicionamento que podemos encontrar em várias obras do realizador!
Créditos de Imagens: Divulgação / Pandora Films / IBC Movie, Kavac Film, Rai Cinema. ARTE, Canal+, Arte France Cinéma,Ciné, Film- und Medienestieftung NRW
A produção tem cerca de dezesseis indicações em Festivais, além de mais dezesseis prêmios em inúmeros eventos da cinematografia. Pelo Sindicato de Jornalistas Italianos Especializados em Cinema ganhou cerca de sete prêmios.
Imponente na reconstituição dos ambientes luxuosos da Igreja Católica, no século XIX, a direção de arte deste filme, da mesma maneira que acontece com o acompanhamento sonoro, evita o deslumbramento: a beleza dos ambientes surge como demonstração da rapacidade dos representantes eclesiásticos, em contraste com a miséria das ruas, em que mendigos suplicam a Momolo a entrega de uma única moeda, quando ele viaja para ser aconselhado por seus correligionários. Neste sentido, o paralelismo da montagem entre o julgamento do inquisidor Feletti (Fabrizio Gifuni) e uma das missas ministradas pelo papa Pio IX é esplêndido, ao comparar a solenidade de ambos os rituais. O rompimento da Porta Pia – ocorrido em 20 de setembro de 1870, definitivo para a unificação da Itália – aparece no filme de maneira exuberante!
Admitida a pujança política do roteiro, escrito pelo realizador e pela também diretora Susanna Nichiarelli (além de mais dois colaboradores), chama a nossa atenção a crueldade sentimental advinda das aparições de Edgardo adulto, já convertido em pároco (agora interpretado por Leonardo Maltese), que rejeita a tradição religiosa de seus pais e adere irrestritamente ao cristianismo, que lhe fôra imposto de maneira tão violenta. A cena em que ele visita sua mãe moribunda, o diálogo com seu irmão Riccardo e a situação em que ele precisa lamber o chão de uma abadia três vezes, a mando do vilanaz Pio IX, são instantes aflitivos da situação verídica que serviu de inspiração para a trama, sendo que o pároco verdadeiro faleceu em 1940, aos oitenta e oito anos de idade. A despeito do que erroneamente faz pensar o título brasileiro, Edgardo é que foi seqüestrado e remodelado nos ambientes impregnados de culpa e pecado do Catolicismo (nos Estados Unidos o longa ganhou um título mais acertado, ''Kidnapped: The Abduction of Edgardo Mortara). Em defesa dele, a crença no perdão. O filme evita a clemência domesticada, no entanto: trata-se de uma acusação feroz, expondo várias atrocidades cometidas em nome de um Deus que deveria ser de amor. Mais um trabalho magistral de Marco Bellocchio, um dos grandes nomes do cinema italiano!
A produção estava na seleção do Festival Italiano 8 ½ no inicio de julho.
18 de Julho nos Cinemas
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