Bernadette, de Léa Domenach


“Nem todos os homens costumam telefonar para as suas esposas, com tanta freqüência”…  


O estilo despojado da diretora Léa Domenach, ainda principiante, chama a atenção pela maneira como presta reverência a um ícone feminista de direita sem que, para isso, seja necessário santificá-la, ao contrário do que se teme, quando percebemos que a narração de abertura é conduzida por um coral de igreja. Por mais que agradeça explicitamente, nos créditos de encerramento, pela inspiração advinda da mulher que foi primeira-dama francesa entre 1995 e 2007, a diretora, que é também co-roteirista de seu filme, não hesita em expô-la como oportunista, o que é justificado pelas ações filantrópicas que ela desenvolveu e apoiou. Política é, admitamos, uma opção pelo “mal menor”, muitas vezes!

Não obstante o tom satírico desta biografia – que possui muitos aspectos inventados, tal qual antecipa a narração supracitada –, a diretora não converte o seu filme numa comédia unilateral: a dramaticidade inequívoca de algumas situações é mantida, visto que o que interessa à realizadora é o contrário do que a verdadeira Bernadette Chirac declarava em entrevistas, ou seja, que “sempre obedecia ao seu marido”. Tendo crescido num mundo com valores conservadores, em que as mulheres devem se manter fiéis aos homens – ainda que eles não façam o mesmo –, a personagem real ousa trilhar um caminho paralelo para si mesma, de maneira que, assim, serve como estímulo ativo para as jovens audiências.

Ampliando as conotações empoderadas da personagem-título do filme “Potiche – Esposa Troféu” (2010, de François Ozon) – este sim, uma comédia sardônica! –, Catherine Deneuve, ela própria considerada “a primeira-dama do cinema francês”, está completamente à vontade enquanto protagonista, dominando todos os instantes em que está em cena, conquanto seus coadjuvantes serem integrantes da prestigiada instituição Comédie-Française: no início, ela é mostrada como uma dondoca brega e, encontrando a orientação adequada, assume a alcunha de ‘vintage’, tomando por modelo a subitamente falecida Diana Spencer [1961-1997], duquesa de Windsor.

Trailer



Ficha Técnica

  • Título original e ano: Bernardette, 2023. Direção: Léa Domenach. Roteiro: Clémence Dargent, Léa Domenach. Elenco: Catherine Deneuve, Denis Podalydès, Michel Vuillermoz, Sara Giraudeau, Laurent Stocker,  Artus,  Françouis Vicentilli, Olivier Breitman, Jacky Necerssian. Gênero: Comédia Dramática. Nacionalidade: França. Direção de fotografia: Elin Kirschfink. Música: Anne-Sophie Versnaeyen. Direção de arte: Jean-Marc Tran Tan Ba. Edição: Christel Dewynter. Produção: Nora Chabert, Fabrice Goldstein, Marco Pacchioni, Antoine Rein. Empresas Produtoras: Karé Productions,  France 3 Cinéma,  Marvelous Productions,  Umedia,.Distribuição: Imovision. Duração: 95 min

Para a transformação positiva de Bernadette Chirac, foi de vital importância, segundo o que vemos no filme, a contribuição do assessor Bernard Niquet (muitíssimo bem interpretado por Denis Podalydès), que, partindo de uma pesquisa de opinião sobe a popularidade da primeira-dama, ajuda-a a modificar as impressões desencadeadas na população francesa, como uma mulher antiquada, austera e fria ou mal-humorada. O sobejo de breguice em suas vestimentas (um sobretudo cor-de-rosa, por exemplo) favorece as impressões em pauta, de modo que ela passará por uma transformação radical, após a intervenção de um conceituado estilista.

Mas vamos do princípio: quando conhecemos a personagem Bernadette Chirac, ela está conversando com um padre (Jacky Nercessian), que elogia a sua intuição geralmente acertada. Bernadette reza para que seu marido, Jacques Chirac (Michel Vuillermoz), seja eleito presidente da França, o que efetivamente ocorre, mas ela é ignorada em diversos eventos comemorativos, geralmente por causa das orientações de sua filha Claude (Sara Giraudeau), que é secretária do pai político e insiste na difusão pública de um ideário de dama servil para a sua mãe. Relegada aos “papéis tradicionais de mulher”, a Bernadette Chirac resta ajudar o marido a dar o nó em sua gravata ou escolher o jantar…

Créditos de Imagens: Divulgação / Imovision
A produção se manteve afastada da família para conseguir ter liberdade criativa. E, portanto, A filha de Bernadette, Claude, falou explicitamente contra o projeto em meados de 2022.

Extremamente incomodada pelo modo como é posta de lado em ocasiões importantes, incluindo uma reunião com o presidente dos EUA e sua esposa (à época, o casal Clinton), Bernadette toma a decisão cabal de desobedecer quando descobre mais uma traição de seu marido, que finge estar numa reunião secreta quando, em verdade, estava com uma amante italiana. A partir daí, ela utiliza a sua influência enquanto personalidade local e, em cidades do interior francês, arregimenta a sua carreira enquanto ativista de causas sociais – nem todas bem-sucedidas, conforme destacará a narração final. Bernadette Chirac, portanto, torna-se uma figura-chave não apenas para a reeleição de seu esposo como também para a escolha de seu sucessor, Nicolas Sarkozy (Laurent Stocker), em relação ao qual mantinha um ressentimento pessoal de longa data. Soma-se a isso a maneira como o casal Chirac lida com a outra filha, Laurence (Maud Wyler), constantemente internada numa casa de repouso, por causa de crises anoréxicas. Este será o diferencial comovedor no livro autobiográfico que ela escreve. 

Entremeando situações ficcionais com reportagens reais, a diretora faz com que admiremos o reconhecimento identitário desta mulher, outrora submissa e desperdiçada em suas volições. Para que não nos sintamos culpados pela empolgação diante de uma personalidade filiada aos valores da direita política, convém enfatizar que os seus principais opositores são a extrema-direita (então presidida pelo racista Jean-Marie Le Pen), de modo que, mais uma vez, opta-se pelo “menos pior”. A montagem é ágil, a trilha musical é empolgante e os eventos mostrados no roteiro evitam o polemismo noticioso, optando por dilemas familiares (o instante em que Jacques urina na tartaruguinha de Bernadette é revoltante) e por uma identificação proveitosa entre a personagem real e a estrela que a interpreta. Que este filme seja lançado num ano eleitoral, aqui no Brasil, é um detalhe ainda mais proveitoso: antes de escolhermos os nossos representantes, além de analisar as suas propostas, seria interessante também averiguar o que ocorre nos bastidores, quando possível. Este filme, além de muito divertido, é também elucidativo! 

HOJE NOS CINEMAS

Escrito por Wesley Pereira de Castro

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