“Para ser independente, é preciso ter autonomia, não um hímen”!
Dona de um estilo particular e deveras reconhecível, no qual plasma as suas memórias enquanto prisioneira (e torturada) política, Lúcia Murat recorrentemente aproveita situações autobiográficas como base para os seus roteiros (aqui, em colaboração com o professor Tunico Amâncio). O diferencial neste mais recente longa-metragem está na concessão de protagonismo a um personagem masculino, que convém ser o soldado responsável por vigiar uma moça encarcerada, cujo drama é baseado na juventude da diretora. E isso é brilhantemente justificado na seqüência derradeira, a partir de uma reflexão vinculada aos escritos da filósofa Hannah Arendt [1906-1975]. Expliquemos do que se trata…
As contundentes obras desta realizadora – como o clássico “Que Bom Te Ver Viva” (1989) e “Ana. Sem Título” (2020) – são demarcadas pela perspectiva feminina e pela dramatização de lembranças doridas, através do compartilhamento de experiências comuns a várias mulheres, quanto aos traumas vividos durante o período ditatorial no Brasil, entre 1964 e 1985. Neste novo trabalho, a diretora permite que sua alter-ego Vera (interpretada por Valentina Herszage) desapareça em cena, em determinado momento – ainda que seja perenemente evocada em ‘flashbacks’ e conselhos ou ensinamentos –, para que dois personagens ligados a ela encontrem a sua emancipação: de um lado, o soldado de origem sulista Armando (Shico Menegat), que arranja uma namorada, Marialva (Beatriz Barros), e decide sair do quartel; do outro, a mãe de Vera, Maria (Georgette Fadel), que se torna uma simpatizante comunista, quanto mais se aprofunda em suas atividades e estudos católicos.
É neste aspecto que o filme revela uma característica sumamente corajosa: não bastasse a tentativa de compreensão de um jovem militar, moralmente reabilitado – o que pode ser tachado de excessiva indulgência, por parte de alguns detratores –, a diretora ousa apresentar um registro mui progressivo da religião, através do padre estrangeiro Jorge (Javier Drolas), que chega a ler trechos de “Os Condenados da Terra”, de Frantz Fanon, durante as homilias. Obviamente, isso será descoberto pelos militares, de modo que ele é sequestrado e torturado pelos agentes da ditadura…
Crédito de Imagens: Imovision / Divulgação / Taiga Films / Cepa Audiovisual
O filme passou pelo Festival do Rio e também pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em 2023
O título do filme, aliás, possui dupla função: em âmbito imediato, refere-se às tentativas do soldado Armando em aproximar-se de Vera, esforçando-se por auxiliá-la, não obstante estar sob o envenenamento discursivo de seu treinamento, em que é obrigado a cantar litanias preconceituosas como “um, dois, três/ terroristas no xadrez”; em âmbito estendido, porém, serve para designar a função congregadora não apenas do padre Jorge, mas também do conteúdo “subversivo” que ele repassa para Maria ou mesmo dos exemplos despojados de Jesus Cristo.
Malgrado ser algo contributivo no desenvolvimento psicológico do personagem Armando, o relacionamento entre ele e Marialva é um tanto arrítmico, estando atrelado às demonstrações cíclicas de toxicidade comportamental, induzidas pelos abusos sofridos no quartel. O desempenho de Higor Campagnaro como o pretensioso e caricatural João também incorre nesta arritmia, visto que a habilidade da diretora em imersões feministas e estratagemas (para)documentais é inegável, mas ela manifesta um tanto de debilidade em suas intenções ficcionais – exceção concedida ao magistral “Quase Dois irmãos” (2004).
Trailer
Ficha Técnica
Título Original e Ano: O Mensageiro, 2023. Direção: Lucia Murat. Roteiro: Lucia Murat, Tunico Amâncio. Elenco: Georgette Fadel, Shi Menegat, Valentina Herszage, Floriano Peixoto. Gênero: Drama. Nacionalidade: Brasil, França. Direção de fotografia: Jacob Solitenick, ABC. Direção de arte: Andre Weller. Música: Ezequiel Menalled. Montagem: Mair Tavares, Marih Oliveira. Figurino: Preta Marques. Produção: Branca Murat, Irene Calado, Julia Levy, Pamela Livia Delgado. Empresas Produtoras: Taiga Filmes e Cepa Audiovisual. Distribuição: Imovision. Duração: 108 min.
Por mais que haja algo de desenxabido nas reações dos alunos da professora Vera (agora interpretada pela cineasta), o salto qualitativo do desfecho é sobremaneira elogiável, pois, ao substituir o alter-ego juvenil por sua própria aparição ressignificada, Lúcia Murat defende-se habilmente dos ataques de espectadores radicais, ainda feridos por causa do que sofreram, ao invocar uma pertinente comparação com a situação da população alemã durante a época nazista, num esforço para entender o porquê da simpatia destas pessoas em relação à malevolência de seu líder. Com isso, a diretora não exclui a tentativa de diálogo com as porções eventualmente bolsonaristas da platéia, sendo explícito um discurso de tolerância no enredo, mediante assunção das responsabilidades cometidas “sob ordens expressas de outrem”. O que está longe de abonar a culpa dos militares, conforme fica evidente no letreiro dos créditos finais, sobre a ausência de julgamentos para os crimes cometidos por eles, no Brasil, ao contrário do que aconteceu na Argentina.
“Perdoar não é esquecer”, enfatiza Lúcia Murat, interpretando a docente Vera, personagem de si mesma: para que haja mudança de atitude, a partir da consciência dos pecados/crimes anteriormente cometidos, é mister pôr em prática a noção emancipatória que a adolescente Vera esforça-se para explicar à sua mãe, em mais de uma situação, seja quando a progenitora encontra pílulas anticoncepcionais em sua bolsa, seja quando Maria tenta se suicidar, após descobrir uma traição do marido Henrique (Floriano Peixoto). “O Mensageiro” (2023) é um dos filmes mais “fáceis” da diretora, mas, precisamente por isso, deveras importante na conjuntura política atual, em que há o enfrentamento de uma insistente polarização político-partidária. Que seja bastante visto, portanto!
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