domingo, 29 de setembro de 2024

O Grito - Regime Disciplinar Diferenciado, de Rodrigo Giannetto | Assista na Netflix

 
O Grito – Regime Disciplinar Diferenciado é um documentário dirigido por Rodrigo Giannetto. O diretor conta com uma filmografia diversa, preenchida por trabalhos como clipes musicais, o longa ''História & Rimas - O Filme'' (2022) e chegou a dirigir um episódio do reality show'' No Limite'', da TV Globo, em 2022. A produção possui estreia agendada na plataforma de streaming Netflix para este domingo (29/09) e conta com participações de Luís Roberto Barroso (presidente do STF), Anielle Franco (Ministra da Igualdade Racial), Padre Júlio Lancelotti, Dr Alberto Toron, o rapper ORUAM (filho de Marcinho VP), Siro Darlan, Luís Valois, Kenarik Boujikian, Erica Kokay, Dudu Ribeiro, Orlando Zaccone, o rapper Dexter, e entre outros.

A produção analisa de forma peculiar uma temática que provavelmente uma boa parcela da sociedade brasileira não possui conhecimento especializado, o regime disciplinar proposto no sistema presidiário. Trata-se de uma forma especial de cumprimento da pena em formato fechado que consiste na permanência do presidiário (provisório ou condenado) em cela individual, com limitações ao direito de visita e do direito de saída da cela. Não somente, mas contempla espaço do audiovisual para abordar como as leis (portaria 157/2019) tem sido cada vez mais restritivas ao direito à dignidade humana de presos no país onde a população carcerária cresce em demasiado. As medidas se iniciaram sob a chancela do Ex-Ministro de Sérgio Moro, com chancela do Governo de Jair Bolsonaro, e em 2023 começaram a ser finalmente questionadas.
Giannetto faz uma provocação. Como fazer um filme que ninguém quer ver? abordar um assunto no qual a sociedade ou não se interessa por inteiro ou cai em ''ideias tortas'' sobre o sistema presidiário em vigor, muito por conta de um julgamento moral e religioso. De fato, é um grande desafio levar o espectador mais senso comum a pensar melhor sobre a proposta e sobre a temática. O filme tem assim a chance de tirar o público da sua zona de conforto e quem sabe fazê-lo ser empático. Exibe uma realidade nua e crua e as consequências que as famílias no Brasil enfrentam quando possuem um parente que vive no atual momento em um presídio.

                                                                     Crédito de Imagens: Real Filmes / Divulgação
"O Grito" conseguiu uma boa caminhada em Festivais de Cinema. No Festival International de Cinéma et Mémoire Commune, no Marrocos, recebeu menção honrosa. Entrou para a seleção oficial do Internazionale Nebrodi Cinema (Itália), Anticensura Film Festival, LA Film & Documentary Award (EUA) e  CinemaKing International Film Festival, em Bangladesh. O filme estará na programação do FIDBA (Argentina), em outubro deste ano.
Um grande acerto do texto e da condução, sobretudo, é trazer por camadas os personagens, seus arcos e perspectivas para um viés de ''raio-x'' do que acontece no sistema. A figura da ''mãe'', um personagem que naturalmente nos enche de conforto e amor, gera um contraponto interessante com essa realidade presidiária, que muitas vezes possui uma energia densa. Os relatos dessas mulheres tão fortes são como um soco no estômago de como tal realidade é dura e nada sensível para os presos ou para os que tem algum tipo de relações com estes e muitas vezes passam meses e anos sem poder realizar visitas ou falar diretamente com o preso. A presença materna é de uma importância enorme para transformar o documentário em algo atrativo e sensível.
Giannetto é competente em seu segundo longa por trazer reflexão sobre uma problemática ainda completamente sem resoluções imediatas. O fato de que o país está cada vez mais direcionando verba para construir presídios, ao invés de avançar no desenvolvimento de politicas educacionais consistentes para auxiliar o trabalho de escolas, universidades e instituições de ensino é simplesmente frustrante. E voltamos à aquela clássica discussão sobre o motivo do Brasil seguir um rumo contrário e ''não perceber'' que o ensino é uma das chaves para mudar a realidade da sociedade brasileira. Que essa luta continue, pois a educação é libertadora e pode salvar muitas vidas. O documentário apresenta um debate inclusivo e bastante consistente.
Trailer

Ficha Técnica
Título Original e Ano: O Grito - Regime Disciplinar Diferenciado. Direção: Rodrigo Giannetto. Participações de: Luís Roberto Barroso (presidente do STF), Anielle Franco (Ministra da Igualdade Racial), Padre Júlio Lancelotti, Dr Alberto Toron, o rapper ORUAM (filho de Marcinho VP), Siro Darlan, Luís Valois, Kenarik Boujikian, Erica Kokay, Dudu Ribeiro, Orlando Zaccone, o rapper Dexter, Marcola, Marcinho VP, Paulinho Neblina. Gênero: Documentário. Nacionalidade: Brasil. Empresa Produtora: Real Filmes. Duração: 01h49min. Classificação: 14 anos.
O documentário circula a realidade brasileira que, de certa forma, tem aspectos sociais enraizados na escravidão, assim como retrata o documentário de Ava Duvernay, indicado ao Oscar em 2017, ''A 13ª Emenda, também disponível na plataforma.
 
Disponível na Netflix

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Terra de Ciganos, de Naji Sidki


 “Esta é a minha lenda. E não tenho nenhuma outra para contar, não”! 

Na abertura deste interessantíssimo documentário, um narrador traz a audiência a “Alegoria da Caverna”, de Platão [428-347 a.C], adaptada ao contexto cigano, na qual conta-se que as pessoas, numa época ancestral, viviam dentro de cavernas, em espaços mal iluminados. Depois que a curiosidade de um cigano faz com que ele saia e enxergue um mundo em que abundam as cores, o sol, as borboletas e as flores, ele volta para conclamar os seus companheiros a saírem de onde estavam e desbravarem um novo mundo. Apenas os ciganos aceitam esta convocação, e são agourados por quem obedecia a leis irracionais. “Por isso, os ciganos vagam, até hoje, de maneira nômade e adivinha”, conclui o narrador. 

Feita esta apresentação, conhecemos os talentos de alguns artistas ciganos, habitantes do Brasil, que se revezam entre o idioma português e a língua compartilhada por seu povo, considerando-se as variações dialetais manifestadas nalgumas regiões. O primeiro destes artistas é o grupo Vitsa Ramanush, cujos versos potentes servem como trilha musical para a peregrinação urbana de três mulheres que vivem no Acampamento Itaim Paulista, em São Paulo. Elas se esforçam para conseguir algum transeunte de quem possa ler as mãos e, assim, angariar algum pagamento. Mas está cada vez mais difícil, hoje em dia! 


Realizado em colaboração com a Embaixada Cigana no Brasil, representada por Ingrid e Nicolas Ramanush, este filme apresenta várias facetas da cultura cigana, com destaque para a sua conhecida musicalidade e para as roupas exuberantes. Ao longo dos noventa minutos de duração, alguns pequenos videoclipes são inseridos, em que às vezes os artistas estão gravando em estúdios, noutras vezes passeiam pelas regiões áridas em que habitam… 


Trailer


Ficha Técnica
Título original e ano: Terra de Ciganos Brasil, 2024Direção: Naji Sidki. Roteiro: Kátia Coelho e Naji Sidki. Pesquisa: Kátia Coelho e Naji Sidki. Personagens: Islaine Confessor/Gláubia Cristina/ as crianças Tareq/Laila e Medeiros/ As calins Tata, Sara e Mara/ Carlos e Floriano/ Léo e Rosana Lima (Circo Big Brother) Acampamento de Carneiros (Alagoas) Pedro Leopoldo (Minas Gerais). Gênero: Documentário. Nacionalidade: Brasil. Operador de Câmera: Naji Sidki. Operador de Drone: Emerson Pena e Roseane Romão. Correção de Cor: José Francisco Neto. Montagem: Daniel Souza. Som direto: Olivia Hernández Fernández. Desenho de Som: Tide Borges, Pedro Martins, Daniel Souza e Ariel Henrique. Diretor de Produção: Farid Tavares. Produtor Nordeste: Guilherme Cesar. Direção de Fotografia: Naji Sidki. Gerente Financeira: Vânia Brandão. Consultores Ciganos: Nicolas e Ingrid Ramanush. Músicos: Vitsa Ramanush: Nicolas Ramanush, Ingrid Ramanush, Buda Nascimento, Denis Rudah e Rogerio Loebel / Breno Cigano / Ronaldo Carlos / Batista Cigano e Erasmo Ferraz / Ferreirinha e Dodó / Fabiano e Bruno Cigano. Produção Executiva: Kátia Coelho. Produtora: Veríssimo Produções. Produtoras Associados: DotCine / Coelho Filmes e Mistral. Distribuidora: Pandora Filmes. Duração: 90'.
A despeito de ser uma produção documental, o diretor evita utilizar, de maneira predominante, o recurso convencional das entrevistas conferidas diretamente para a câmera. Opta por reconstituições paraficcionais, em que pessoas interagem, de maneira encenada, a fim de demostrar a efetividade dos costumes ciganos. Num dos casos, por exemplo, um fazendeiro tenta vender uma égua-mirim para dois ciganos e, ao final, aceita trocá-la por um peru, com alguns adendos devolutivos neste escambo. Noutro momento, o ônibus em que a banda supracitada viajava com sua trupe de cantores quebra no meio da estrada e eles pedem carona a alguém que passa de carro. Num determinado ponto, eles avistam a caravana circense de Léo Lima, proveniente de Petrolina, em Pernambuco, e, junto à esposa deste, Rosana, todos falam sobre a importância de conservar as tradições romani. 


Dois aspectos culturais são mostrados de maneira célere, que são justamente aqueles mais conhecidos pela população em geral: os casamentos e as rixas longevas. Uma cigana com voz grave anuncia um matrimônio triplo que acontecerá naquela região, entre primos, explicando o valor concedido à virgindade feminina nestes rituais; e, num relance, fala-se sobre quão duradouras e sangrentas são as rivalidades, quando surgem. 

Crédito de Imagens: Pandora Filmes / Divulgação / DotCine / Coelho Filmes e Mistral
O filme, que teve sua estreia na competição nacional do 16° Festival Internacional do Documentário Musical, In Edit, 


Ao diretor, entretanto, importa muito mais a musicalidade, de modo que ele aproveita ao máximo as histórias de vida do octogenário Ferreirinha, andarilho nordestino, instalado no Rio Grande do Norte: ele relembra como foi a sua alfabetização heterodoxa e, tanto quanto outros depoentes, reitera que o modo de os ciganos dedicarem-se à música ocorre de maneira muito livre. “Nem sequer utilizamos partituras, pois isto enfadaria os envolvidos”, explana outro cigano, ao defender o modo peculiar com que eles compõem e cantam. Na tela, ouvimos também variações sertanejas/caipiras em linguajar próprio, nas interpretações de Fabiano & Bruno Cigano, do Acampamento Itaquaquecetuba, em São Paulo, e o jovem Breno Cigano, em Porto Seguro, na Bahia, que passeia um tanto aturdido pelas ruas da cidade. Este último, aliás, enceta uma versão da famosa “(Ghost)Riders in the Sky: a Cowboy Legend” de Stanley Jones, que, na adaptação local, foi rebatizada como “Pendeile os Calons”, a cargo do compositor chibe Zanata Dantas. 

Para quem aprecia os filmes de Emir Kusturica e Tony Gatlif ou nutre fascínio pelas histórias de um “povo sem pátria”, que assume um viés anarquista e define a si mesmos como “uma ampulheta em que o tempo não escorre”, este filme é obrigatório. Há um poema declamado, em que a natureza é definida como “a roupa do mundo”, enquanto os ciganos são aclamados como “o perfume da terra”. Num segmento prolongado, acompanhamos a peregrinação de famílias pelo sertão alagoano, cujos pedidos de água, comida e abrigo são reiteradamente negados pelos “coronéis” locais, donos de terra mal-humorados que logo pegam espingardas, para assustar os ciganos, geralmente estigmatizados como ladrões. Ao invés disso, vemo-los preparando chás, cantando em quaisquer oportunidades. Em belíssimos enquadramentos gerais feitos via ‘drones’ ou gruas, a voz de Nicolas Ramanush cantarolando “Lachi Gili” surge imponente na banda sonora, permanecendo em nossa mente por muito tempo, após a sessão. Um trabalho magistralmente realizado: o diretor Naji Sidki está de parabéns! 

EM EXIBIÇÃO NOS CINEMAS

Ainda Somos Os Mesmos, de Paulo Nascimento


Após Chame a Bebel (2023), filme voltado para o público infanto-juvenil, o diretor e roteirista Paulo Nascimento volta sua atenção para a audiência adulta novamente com Ainda Somos Os Mesmos. A parceria de anos do diretor com Edson Celulari garante um papel para o ator como o rico empresário Fernando. Porém, a presença do famoso interprete de novelas globais é uma faca de dois gumes. Enquanto seu nome pode chamar atenção e atrair espectadores, a participação não ajuda o desenvolvimento do filme. Ainda mais quando ele leva na cabeça uma peruca que salta aos olhos pela falta de realismo e um ar de ''canastrão'' é o que se revela.

Peça chave na trama, Fernando é o pai do protagonista Gabriel (Lucas Zaffari) e o motivo pelo qual o rapaz sobrevive a duas ditaduras militares - a brasileira e a chilena. Com seu dinheiro e sua influência no governo, o homem mexe os pauzinhos para que o filho consiga sair do seu próprio país quando está sendo procurado e, depois, para que o jovem estudante de medicina consiga deixar o Chile logo após o golpe que depôs o presidente Salvador Allende, em 1973.

Entre flashbacks e cenas que mostram Fernando no Brasil, o enredo se dá principalmente dentro da embaixada da Argentina no Chile, onde centenas de brasileiros se refugiam do regime sanguinário. Estima-se que sejam quinhentos aqueles que se espremem no prédio em condições precárias, sem espaço para dormir, sem comida suficiente e sem remédios. Os pontos altos do filme se passam nessa locação, onde o diretor consegue segurar a tensão ao retratar algumas situações-limite, como um parto de risco que Gabriel tem que conduzir e uma negociação com os soldados, que pedem pela cabeça de um dos refugiados em troca da vida de todos os outros presentes. 

Crédito de Imagens: Divulgação / Paris Filmes
A produção participou do Festival de Cinema Independente de Montreal e foi vencedora de ''Melhor Filme Independente'', em 2023.

Mesmo com esses destaques, a condução do longa-metragem é fraca. O roteiro por várias vezes usa soluções bobas para problemas sérios, que não conseguem alcançar a suspensão de descrença do espectador. Além disso, tenta retratar uma pessoa em processo de enlouquecimento (Clara, vivida por Carol Castro) de forma ultrapassada e estereotipada. A fotografia e trilha sonora trabalham aliadas à direção de forma piegas e novelesca, tentando forçar um sentimentalismo, como se a história já não fosse emocionante por si só.

O título, que referencia diretamente a música consagrada na voz de Elis Regina, é evocado não só pela temática da ditadura militar, mas também por traçar um paralelo ao final da película entre esta e a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023. O tom otimista de vitória que é exibido em letreiros dizendo frases como “a democracia venceu” soa infantil, reducionista e pouco crítico. Mesmo após dez longas, Paulo Nascimento ainda não encontrou seu tom.


Trailer



Ficha Técnica

Título Original e Ano: Ainda Somos Os Mesmos, de Paulo Nascimento. Direção, Roteiro e Produção: Paulo Nascimento. Elenco: Edson Celulari, Carol Castro, Lucas Zaffari, Nestor Guzzini, Nicola Siri, Carlos Falero, Rogério Beretta, Alvaro Rosacosta, Evandro Soldatelli, Pedro Garcia, Gabrielle Fleck, Jurema Reis, Juan Tellategui, Néstor Monasterio e Liane Venturella. Gênero: Drama histórico/Suspense Político. Nacionalidade: Brasil e Chile. Direção de Fotografia: Renato Falcão. Direção de Arte: Eduardo Antunes. Figurino: Carol Scortegagna. Trilha Musical: Sílvio Marques. Canção tema: “Como Nossos Pais” de Belchior interpretada por Thedy Correa. Montagem: Marcio Papel. Videografismo, Design e Efeitos Gráficos: Aline Bastos D’Ávila. Desenho de Som: Walther Nunes. Produtores Associados: Edson Celulari e Carol Castro. Produção Executiva: Marilaine Castro da Costa, Flavio Barboza. Direção de Produção: Mônica Catalane. Distribuição: Paris Filmes. Duração: 01h30min.
EM EXIBIÇÃO NOS CINEMAS 

Deixe-Me, de Maxime Rappaz | Um Lançamento Imovision

 
“Tu aceitarias ter uma conversa íntima por telefone? Do tipo ‘gostaria que tu estivesses aqui…’?”

Proveniente do mundo da moda, o diretor suíço Maxime Rappaz conduz uma trama deveras sensível em seu primeiro longa-metragem: a ótima Jeanne Balibar tem uma interpretação sobremaneira delicada, como a protagonista Claudine, uma costureira que divide os seus dias entre o cuidado intensivo de seu filho Baptiste (Pierre-Antoine Dubey), que é portador de deficiência, e flertes com desconhecidos, num hotel montanhês, onde aproveita os contatos sexuais para obter histórias citadinas, que são convertidas em cartas imaginárias de um pai ausente, para Baptiste…

Bastante despojado na exposição das cenas de nudez, por parte de atores mais velhos, este filme constrói o dilema emocional da protagonista de um jeito cadenciado: tendo sido bem-sucedida em evitar que suas conquistas eróticas evitassem querer saber algo sobre ela, Claudine, de repente, vê-se diante de um possível interesse romântico, que chega a convidá-la a viajar consigo. Michael (Thomas Sarbacher) é um engenheiro eletricista alemão que faz com que, pela primeira vez em muito tempo, Claudine começasse a pensar em sua própria vida, no que tange a um recomeço comportamental, de caráter íntimo. Será que ela consegue?

Obcecado pela princesa Diana de Gales [1961-1997] e pelo cantor irlandês Johnny Logan, duas vezes vencedor do concurso Eurovision, Baptiste também dedica-se a estudos de piano, ofertados pela vizinha de Claudine, Chantal (Véronique Mermoud). Esta parece não enxergar com bons olhos as saidelas de Claudine e, em algum momento, faz insinuações a Baptiste, sobre as cartas que ele recebe de seu suposto pai. Tudo isso contribui para que Claudine cogite a possibilidade de emancipar-se familiarmente, de começar a aproveitar a inusitada segurança relacional ofertada por Michael.

Trailer 

Ficha Técnica
Título original e ano: Laissez-moi, 2023. Direção: Maxime Rappaz. Roteiro: Maxime Rappaz, Florence Seyvos, Marion Vernoux. Elenco: Jeanne Balibar, Thomas Sarbacher, Pierre-Antoine Dubey, Véronique Mermoud. Gênero: Drama. Nacionalidade: Suiça, França e Bélgica. Direção de fotografia: Benoît Dervaux. Direção de arte: Rekha Musale, Ivan Niclass. Música: Antoine Bodson. Montagem: Caroline Detournay. Produção: Gabriela Bussman, Yan Decoppet. Empresa Produtoras: GoldenEggProduction. Distribuição: Imovision. Tempo: 92 min. Classificação: 16 anos


Situado tramaticamente no final da década de 1990, os personagens deste filme folheiam revistas, recebem e lêem cartas pelo correio e ainda utilizam o videocassete. Estes atos hoje nostálgicos ajudam a balizar o ritmo lento – mas sempre agradável – do enredo, a cargo do próprio diretor e mais dois roteiristas. Os diálogos são muito simpáticos na maneira igualmente sincera e inconclusa com que se desenvolvem: Claudine não mente ao falar sobre o seu passado, mas, mesmo assim, sabemos pouco sobre o que levou o pai de seu filho a desaparecer. E ela não sente qualquer vergonha da condição debilitada de Baptiste, de modo que ele a faz companhia em seu ateliê, volta e meia sendo convocado para dar pareceres sobre os vestidos que ela costura. 

A fotografia do filme aproveita de maneira fascinante a beleza da região turística em que se passa a trama: Claudine geralmente passeia por lugares ermos, até subornar o funcionário Nathan (Adrien Savigny), que lhe conta quais clientes viajarão no dia seguinte, a fim de que ela possa se aproximar deles sem o receio de que eles queiram um contato mais demorado. Parece um tanto difícil se identificar com Claudine, no início, mas logo compreendemos as suas práticas conscienciosas e solidarizamo-nos em relação à sua busca por alguma felicidade. Quem se atreveria a julgá-la, por ao menos tentar?


Crédito de Imagens: Divulgação / Imovision / GoldenEggProduction
A produção foi ganhadora do prêmio ''Film in Focus'' no Zurich Film Festival e também levou para casa ''Escolha da Audiência'' na categoria de ''Vanguarda'' no Vancouver Film Festival. Ambos os prêmios foram recebidos em 2023.

Muitíssimo bem interpretado, este filme demonstra uma segurança benfazeja do diretor quanto aos seus intentos dramáticos: as cenas em que Claudine dá banho em seu filho são bastante delicadas, sobretudo quando ele reage de maneira hostil aos seus cuidados. O momento em que ela flagra-se cantarolando uma canção de amor em francês é também muito significativa, acerca daquilo que Claudine passa a experimentar depois que conhece Michael. Ela chega até a ler um artigo científico que ele escreve três vezes! 

No desfecho, a vida de Claudine é confrontada com algumas modificações: a rotina pitoresca que, até então, legou-lhe algum conforto, para o bem e para o mal, ao longo de anos, é substituída por uma estrada em aberto, em que ela precisará repensar o que fará, dali por diante. Isso, por conseguinte, afeta ternamente o espectador, no que diz respeito ao questionamento dos gestos automáticos do dia a dia, à insegurança que se instaura quando precisamos tomar decisões importantes. Um filme simples, mas assaz gracioso naquilo que propõe e expõe. Muito bom! 

Avaliação: Quatro encontros amorosos (4/5)

HOJE NOS CINEMAS

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Agatha Desde Sempre, Episódio 3 | Assista no Disney+

 
''Domine Seus Medos''

O mundo sentiu o peso do retorno da ardilosa Agatha Harkness (Kathryn Hahn) e se comoveu com sua jornada, um tanto quanto duvidosa, para rever seus poderes. Assim, fez seu retorno ao ''caminho das bruxas'' com um coven recentemente formado por Lilian Calderu (Patti LuPone), Jennifer Kale (Sasheer Zamata), Alice Wu (Ali Ahn) e a vizinha, a Senhora Hart (Debra Jo Rupp). O misterioso jovem (Joe Locke) que Agatha prendeu em sua casa também acompanhou as bruxas para se aprofundar na bruxaria e a mulher ficou receosa de que ele tenha algo a ver com seu passado, podendo ser ou um familiar preso em um feitiço, ou alguém muito precioso para inimigos da bruxa do poder púrpura. 

Episódio 3 - ''Por Provações Irá Passar'' - Direção: Rachel Goldberg.
Spoiler Alert

O terceiro episódio, escrito por Cameron Squires e Jac Schaeffer, se entrega já em seu título e se trata de provas que as Bruxas terão de vencer, ou superar, para se melhorarem como feiticeiras e ainda não perderem a vida. A senhora Hart, ainda não iniciada nas artes da bruxaria, acaba se perdendo e necessita de auxilio para se acalmar. Quando o grupo se volta para procurar a mulher, encontra ainda uma casa de praia que surge no meio da estrada. O coven adentra o lugar iluminado e tudo nelas se modifica, a começar pelas roupas e cabelos. Ali, entram em contato com alucinações fortes e traumas após beber um vinho misterioso e uma das provações em que elas tem de se unir para formar um antidoto poderoso e remover o veneno induzido. A prova deixa a vida de uma delas em alto risco e as cenas finais vão evidenciar que talvez uma das ''bruxas'' escolhidas de última hora não tenha chance de continuar a peregrinação.

Crédito de Imagens:  © 2024 MARVEL / Photo  by Courtesy of Disney - © Disney
O Coven é formado pelo puro e completo desejo de cada uma das Bruxas para superar seus próprios traumas e Agatha está sempre tentando se esquivar e sair por cima das situações


Na estrada, se descobre que Jennifer precisa se desbloquear para que seu poder de poções retorne e fique mais forte, Lilian precisar reverter sua sorte, já que traumas a perseguem quando tenta fazer adivinhações, Alice quer saber o que aconteceu a sua mãe, criadora da balada que leva ao caminho das Bruxas, mas a Sra. Hart é o grande mistério do grupo, pois não se sabe se ela é realmente uma Bruxa ativa, assim, se ouve Agatha a chamar de ''Bruxa não iniciada'', bem como o garoto que acompanha o grupo e pede que eles não se afastem do caminho para que ninguém se perca.

A balada, que as leva até ali, está na mente das mulheres e é o guia para tudo que fazem, além de suas intuições. As bruxas conversam entre si em um momento de ''descontração'' que vem antes da tempestade e desabafos sobre a vida de bruxa ou as caricaturas que sofrem vem à tona. ''Culpo o Halloween'', diz Lilian em certo momento que afirma ''não ter ninguém ali com um chapéu pontudo'' e após a senhora Hart dizer que ''Bruxas são apenas garotas más'' e todas elas não exatamente concordarem com tal ponto de vista. 

                    Crédito de Imagens:  © 2024 MARVEL / Photo  by Courtesy of Disney - © Disney
A série apresenta pela primeira vez o logo ''Marvel Television''

O episódio é cheio de comicidade, drama, fantasia e super movimentado pelo passado de Agatha. A personagem tem um trauma muito forte em relação aos poderes que adquiriu quando ''trocou seu filho'' pelo Darkhold. Ou ao menos é o boato que corre no universo bruxo e as mulheres vão falar muito disso, além de cenas traumáticas lembrarem Agatha de tal possível ''perda''. A todo momento a mulher estará tentando fugir das provações, como beber o vinho ou sair da casa, mas no momento em que finalmente precisa auxiliar nas provas, motivará quem for para continuar, pois sabe que todas que estão ali são dignas de poderes surreais e podem vencer qualquer coisa. 

Trailer



Ficha Técnica

Título Original e Ano: Agatha All Along, 2024. Criador: Jac Schaffer. Direção: Jac Schaeffer. Roteiro: Jac Scharffer - adaptação para a tevê da personagem criada por Stan Lee e Jack Kirby para os quadrinhos. Elenco: Kathryn Hahn, Joe Locke,  Debra Jo Rupp, Aubrey Plaza,  Patti LuPone, Ali  Ahn, Sasheer Zamata, Emma Caulfield Ford, David A Peyton, David Lengel,  Asif Ali, Amos Glick. Gênero: Ação, Drama, Scifi,Fantasia. Nacionalidade: Estados Unidos da América. Trilha Sonora Original: Christophe Beck e Michael Paraskevas. Fotografia: Caleb Heymann. Edição: Jamie Gross. Design de Produção:  John Collins. Direção de Arte: Drew Monahan. Figurino:  Daniel Selon. Produção de: Kevin Feige. Empresas Produtoras: 20th Television, Marvel Entertainment, Marvel Studios. Disponível no Disney+Classificação: 14 anos.

O desfecho do episódio acaba levantando dúvidas sobre como o coven continuará forte pelo caminho e é no quarto episódio que uma surpresa muito necessária fará o espectador que ama séries de tv pular da cadeira (e talvez até adivinhar os próximos passos do grupo).

A música ''Heads Will Roll'', da banda Yeah Yeah Yeahs, dá o tom dos créditos e casa perfeitamente com o senso de perigo que a jornada tem. 

Avaliação: Quatro poções venenosas (4/5).

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Saudade Fez Morada Aqui Dentro, de Haroldo Borges


“Você acha que dói só em você?!” 


Ainda que tenha realizado, até o momento, apenas dois longas-metragens, Haroldo Borges pode, desde já, ser considerado um autor cinematográfico. Seus dois filmes foram lançados comercialmente em 2024, após serem exibidos em festivais, e, em ambos, há um diálogo que se repete: quando alguém pergunta ao protagonista se ele tem namorada. Diante da resposta negativa, o interlocutor insiste: “e namorado?”. É a deixa para uma reflexão tangencial sobre a naturalização da homossexualidade num ambiente em que, até pouco tempo, ela era inaceitável: o sertão nordestino. 


Frisamos, aqui, que esta não é a temática dos filmes deste realizador. Tanto em “Filho de Boi” (2019, co-dirigido por Ernesto Molinero) quanto em “Saudade Fez Morada Aqui Dentro” (2022), o realizador baiano revela-se um extraordinário condutor de interpretações adolescentes. A espontaneidade demonstrada por seu jovem elenco faz com que, em diversos momentos, pensemos estar diante de documentários, o que é reforçado pelo fato de os personagens terem os mesmos nomes de seus intérpretes. Porém, ótimos roteiros são desenvolvidos nos dois casos, em que a emoção é brilhantemente dissolvida no realismo das narrativas… 

No filme mais recente, acompanhamos o cotidiano dos irmãos Bruno (Bruno Jefferson) e Ronnaldy (Ronnaldy Gomes), filhos de uma senhora evangélica e abnegada (Wilma Macêdo). Não sabemos quem são os pais daqueles garotos, mas notamos que eles têm uma ótima relação fraternal. Logo no começo, como é típico da puberdade, eles se desafiam em relação à quantidade de meninas que “ficaram”. Uma situação trágica interromperá a leveza das cenas exordiais: logo sabemos que Bruno está ficando progressivamente cego! 

Trailer

Ficha Técnica


Título Original e Ano: Saudade Fez Morada Aqui Dentro, 2022Direção: Haroldo Borges. Roteiro: Haroldo Borges, Paula Gomes. Diretor Assistente: Ernesto Molinero. Elenco: Bruno Jefferson, Ângela Maria, Ronnaldy Gomes, Terena França, Wilma Macêdo, Heraldo de Deus, Vinicius Bustani. Gênero: Drama. Nacionalidade: Brasil. Direção de Fotografia: Haroldo Borges. Direção de Arte: Marcos Bautista. Montagem: Haroldo Borges, Juliano Castro. Som: Pedro Garcia, Victor CoroaProdução: Paula Gomes, Ernesto Molinero, Marcos Bautista. Produtora: Plano 3 Filmes. Distribuição: Cajuína Audiovisual. Duração: 01h47min. Classificação indicativa: 14 Anos
Após um ano afastado da escola, por conta do diagnóstico e possível tratamento de sua moléstia ocular, Bruno recebe o auxílio de sua colega Ângela (Ângela Maria), que decide sentar ao seu lado, à frente da sala, a fim de poder ajudá-lo a copiar os conteúdos escolares. A mãe de Bruno reúne-se com os professores, para explicar as condições da doença de seu filho, mas apenas um deles demonstra-se apto a ensiná-lo, caso ele fique completamente cego. Ocorre que este professor (interpretado por Vinícius Bustani, que já trabalhara anteriormente com o diretor) é difamado em pichações: “o professor Vinícius é viado”, lê Bruno no banheiro da escola… 

Especializado no ensino de leitura em Braille, Vinícius desempenhará um papel importante na vida de Bruno, depois que sua visão desaparece por completo. E isso ocorre num instante sumamente emocionante, em que, quando Bruno adormece, um demorado ‘fade-out’ aparece na tela e, quando desperta, ele não consegue enxergar mais nada. Aos prantos, ele clama por seu irmão, que prontamente surge. É uma seqüência tão bonita quanto dolorosa, que contagia o espectador com o fluxo lacrimal emanado pelos dois irmãos. 

Crédito de Imagens: Cajuína Audiovisual / Plano 3 Filmes / Divulgação
''Saudade Fez Morada Aqui Dentro'' foi anunciado, no início desta semana, como possível candidato do Brasil a ser enviado para a comissão de ''Filme Internacional'' na Academia de Artes, em Hollywood (OSCAR), ao lado dos filmes ''Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, e Motel Destino, de Karim Aïnouz, entre outros.

Não obstante os quase cento e dez minutos de duração deste extraordinário filme serem demarcados por cenas simples, corriqueiras, pelo menos três situações destacam-se pelo impacto emocional desencadeado: além da que fôra descrita acima, o momento em que Bruno é abandonado por Ângela, numa região distante de sua casa; e o instante final, de extrema cumplicidade fraternal, paralisado em seu ápice, para que os sorrisos daqueles garotos continuem enternecendo as reações da platéia, perante um trabalho fílmico mui singular no panorama brasileiro contemporâneo. 

É interessante como Bruno lida com o inusitado romance que ele testemunha, entre a sua amiga Ângela e a jovem soteropolitana por quem ele fica atraído (vivificada por Terena França). No afã por defendê-las do preconceito local, ele termina cometendo uma gafe que interfere drasticamente no relacionamento entre elas, sendo que ele conhece Terena justamente quando Ângela deixa de lhe dar atenção, numa festa, quando encontra Jonas Laborda – protagonista do fascinante documentário “Jonas e o Circo Sem Lona” (2015, de Paula Gomes), roteirizado justamente por Haroldo Borges. Os personagens vivem no município de Uraçá, onde os “paredões” musicais são comuns. Bruno adora dançar, jogar futebol, desenhar ilustrações coloridas. Teme que, após a instauração da cegueira, precisará abandonar estes prazeres. O filme consola-o através de uma magistral demonstração de companheirismo, eventualmente atravessado por problemas e discussões, visto que, afinal de contas, ele é apenas um adolescente, e tem todo o direito de se chatear com aquilo que acontece ao seu redor. Aliás, é ótimo ouvir expressões regionais como “zuada”, “bixiga” e “ôxe” nas vozes de um elenco tão eloqüente. Que filme maravilhoso!

HOJE NOS CINEMAS