Saudade Fez Morada Aqui Dentro, de Haroldo Borges


“Você acha que dói só em você?!” 


Ainda que tenha realizado, até o momento, apenas dois longas-metragens, Haroldo Borges pode, desde já, ser considerado um autor cinematográfico. Seus dois filmes foram lançados comercialmente em 2024, após serem exibidos em festivais, e, em ambos, há um diálogo que se repete: quando alguém pergunta ao protagonista se ele tem namorada. Diante da resposta negativa, o interlocutor insiste: “e namorado?”. É a deixa para uma reflexão tangencial sobre a naturalização da homossexualidade num ambiente em que, até pouco tempo, ela era inaceitável: o sertão nordestino. 


Frisamos, aqui, que esta não é a temática dos filmes deste realizador. Tanto em “Filho de Boi” (2019, co-dirigido por Ernesto Molinero) quanto em “Saudade Fez Morada Aqui Dentro” (2022), o realizador baiano revela-se um extraordinário condutor de interpretações adolescentes. A espontaneidade demonstrada por seu jovem elenco faz com que, em diversos momentos, pensemos estar diante de documentários, o que é reforçado pelo fato de os personagens terem os mesmos nomes de seus intérpretes. Porém, ótimos roteiros são desenvolvidos nos dois casos, em que a emoção é brilhantemente dissolvida no realismo das narrativas… 

No filme mais recente, acompanhamos o cotidiano dos irmãos Bruno (Bruno Jefferson) e Ronnaldy (Ronnaldy Gomes), filhos de uma senhora evangélica e abnegada (Wilma Macêdo). Não sabemos quem são os pais daqueles garotos, mas notamos que eles têm uma ótima relação fraternal. Logo no começo, como é típico da puberdade, eles se desafiam em relação à quantidade de meninas que “ficaram”. Uma situação trágica interromperá a leveza das cenas exordiais: logo sabemos que Bruno está ficando progressivamente cego! 

Trailer

Ficha Técnica


Título Original e Ano: Saudade Fez Morada Aqui Dentro, 2022Direção: Haroldo Borges. Roteiro: Haroldo Borges, Paula Gomes. Diretor Assistente: Ernesto Molinero. Elenco: Bruno Jefferson, Ângela Maria, Ronnaldy Gomes, Terena França, Wilma Macêdo, Heraldo de Deus, Vinicius Bustani. Gênero: Drama. Nacionalidade: Brasil. Direção de Fotografia: Haroldo Borges. Direção de Arte: Marcos Bautista. Montagem: Haroldo Borges, Juliano Castro. Som: Pedro Garcia, Victor CoroaProdução: Paula Gomes, Ernesto Molinero, Marcos Bautista. Produtora: Plano 3 Filmes. Distribuição: Cajuína Audiovisual. Duração: 01h47min. Classificação indicativa: 14 Anos
Após um ano afastado da escola, por conta do diagnóstico e possível tratamento de sua moléstia ocular, Bruno recebe o auxílio de sua colega Ângela (Ângela Maria), que decide sentar ao seu lado, à frente da sala, a fim de poder ajudá-lo a copiar os conteúdos escolares. A mãe de Bruno reúne-se com os professores, para explicar as condições da doença de seu filho, mas apenas um deles demonstra-se apto a ensiná-lo, caso ele fique completamente cego. Ocorre que este professor (interpretado por Vinícius Bustani, que já trabalhara anteriormente com o diretor) é difamado em pichações: “o professor Vinícius é viado”, lê Bruno no banheiro da escola… 

Especializado no ensino de leitura em Braille, Vinícius desempenhará um papel importante na vida de Bruno, depois que sua visão desaparece por completo. E isso ocorre num instante sumamente emocionante, em que, quando Bruno adormece, um demorado ‘fade-out’ aparece na tela e, quando desperta, ele não consegue enxergar mais nada. Aos prantos, ele clama por seu irmão, que prontamente surge. É uma seqüência tão bonita quanto dolorosa, que contagia o espectador com o fluxo lacrimal emanado pelos dois irmãos. 

Crédito de Imagens: Cajuína Audiovisual / Plano 3 Filmes / Divulgação
''Saudade Fez Morada Aqui Dentro'' foi anunciado, no início desta semana, como possível candidato do Brasil a ser enviado para a comissão de ''Filme Internacional'' na Academia de Artes, em Hollywood (OSCAR), ao lado dos filmes ''Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, e Motel Destino, de Karim Aïnouz, entre outros.

Não obstante os quase cento e dez minutos de duração deste extraordinário filme serem demarcados por cenas simples, corriqueiras, pelo menos três situações destacam-se pelo impacto emocional desencadeado: além da que fôra descrita acima, o momento em que Bruno é abandonado por Ângela, numa região distante de sua casa; e o instante final, de extrema cumplicidade fraternal, paralisado em seu ápice, para que os sorrisos daqueles garotos continuem enternecendo as reações da platéia, perante um trabalho fílmico mui singular no panorama brasileiro contemporâneo. 

É interessante como Bruno lida com o inusitado romance que ele testemunha, entre a sua amiga Ângela e a jovem soteropolitana por quem ele fica atraído (vivificada por Terena França). No afã por defendê-las do preconceito local, ele termina cometendo uma gafe que interfere drasticamente no relacionamento entre elas, sendo que ele conhece Terena justamente quando Ângela deixa de lhe dar atenção, numa festa, quando encontra Jonas Laborda – protagonista do fascinante documentário “Jonas e o Circo Sem Lona” (2015, de Paula Gomes), roteirizado justamente por Haroldo Borges. Os personagens vivem no município de Uraçá, onde os “paredões” musicais são comuns. Bruno adora dançar, jogar futebol, desenhar ilustrações coloridas. Teme que, após a instauração da cegueira, precisará abandonar estes prazeres. O filme consola-o através de uma magistral demonstração de companheirismo, eventualmente atravessado por problemas e discussões, visto que, afinal de contas, ele é apenas um adolescente, e tem todo o direito de se chatear com aquilo que acontece ao seu redor. Aliás, é ótimo ouvir expressões regionais como “zuada”, “bixiga” e “ôxe” nas vozes de um elenco tão eloqüente. Que filme maravilhoso!

HOJE NOS CINEMAS

Escrito por Wesley Pereira de Castro

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