“As janelas, aqui, ficam sempre fechadas. É uma medida de segurança”!
Um comentário tão impulsivo quanto inevitável é atestar que este filme resgata as sutilezas humorísticas de produções como “Encontros e Desencontros” (2003, de Sofia Coppola), visto que o estranhamento inicial da protagonista, acerca dos costumes nipônicos, confere ao enredo a aparência de comédia. O roteiro da própria diretora Élise Girard, em colaboração com a dupla Maud Ameline e Sophie Fillières, recém-falecida [1964-2023 - e esta última chega a reaproveitar os nomes dos personagens de um curta-metragem que realizou em 2006], permite que “Sidonie no Japão” (2023) alce vôos muito mais delicados, chegando a homenagear “Hiroshima, Meu Amor” (1959, de Alain Resnais) em seu desfecho. Trata-se de uma película que transita por diversos gêneros, de modo que o seu flerte com o romantismo possui momentos engraçados e outros plangentes...
Na primeira sequência, sem que ainda saibamos quem é Sidonie (magistralmente interpretada por Isabelle Huppert), percebemos que ela está prestes a viajar. Notamos que ela é uma mulher solitária e, a julgar pelas numerosas fotos de um determinado homem em seus pertences, ela perdeu o seu marido recentemente. De fato, procede. Sidonie, porém, demonstra-se hesitante em ir para o Japão, a fim de participar do lançamento local de seu primeiro livro, “L’Ombre Portée” [algo como “A Sombra Projetada”, em tradução livre]. Chegando bastante atrasada no aeroporto, ela descobre que seu vôo ainda não partira, o que soa assaz oportuno, a despeito de seu receio de passar onze horas num avião. Um novo mundo abrir-se-á para ela, como se a mesma estivesse, em verdade, reencontrando-o. Lágrimas de tristeza somar-se-ão às lágrimas de alegria, quando ela constata isso!
Assim que desembarca no Japão, Sidonie é obrigada a explicar os motivos de sua viagem, e é quando ela menciona o lançamento do livro. Ao lhe perguntarem se ela é escritora, ela responde “sim e não”, o que acende a suspeita de insegurança emocional. Quando conhece o editor Kenzo Mizoguchi (Tsuyoshi Ihara), ela – tanto quanto nós, espectadores – quer saber, imediatamente, se ele é parente do famoso diretor japonês, mas ele esclarece que seu sobrenome é comum no Japão. Nas breves conversas que travam, nas corridas de táxi em que ficam juntos, ele limita-se a responder o básico, interagindo de maneira compassada, enquanto ela revela-se progressivamente carente. Por detrás de ambos, imagens citadinas são projetadas nas janelas…
Trailer
Ficha Técnica
Título original e ano: Sidonie au Japon, 2023. Direção: Elise Girard. Roteiro: Maud Ameline, Élise Girard. Elenco: Isabelle Huppert, August Diehl, Tsuyoshi Ihara, Yuko Hitomi, Aurore Catala, Yousuke Kitaguche, Masume Fukushi, Keiko Hara, Hiroko Yûka. Gênero: Drama. Nacionalidade: França. Direção de fotografia: Céline Bozon. Direção de arte: Reinhilde Blaschke. Figurino: Dorothee Hohndorf. Música: Gérard Massini. Montagem: Thomas Glaser. Produção: 10:15 Productions. Produzido por: Sébastien Haguenauer. Antoine Morand , Yu Shibuya , Elena Tatti. Distribuição: Imovision. Tempo: 95min. Classificação: 14 anos.
De antemão, nota-se uma diferença de posturas entre Sidonie e Kenzo, o que nos fará intuir que eles são complementares, justificando o fascínio dele pelo tipo de livro que ela escreve. Enquanto ela busca algo que os interseccione, antevendo uma proximidade afetiva, ele enfatiza o que há de distinto nas atitudes de ambos: Kenzo nota que Sidonie está bastante perfumada, num dos passeios, e comenta que as mulheres japonesas não costumam utilizar esse tipo de fragrância; noutro momento, ele afirma que Sidonie não tem problemas em compartilhar publicamente os seus problemas ou traumas, confessando dilemas intensos em entrevistas, enquanto os japoneses tendem a esconder os seus sentimentos.
Depois que se instala em seu quarto de hotel, Sidonie observa que as janelas estão trancadas, e ouve da recepcionista que isso acontece para evitar acidentes. Ocorre que, ao voltar de um dos eventos de divulgação literária dos quais ela participa, Sidonie encontra não apenas a janela destrancada, como também verifica que alguém comeu as suas refeições. Algum tempo depois, ela perceberá que essa era a maneira que o fantasma de seu marido Antoine (August Diehl) encontrou para manifestar-se, visto que eles estão no “país dos fantasmas”, que é o Japão.
Crédito de Imagens: Imovision / Divulgação / 10:15 Productions
A produção francesa começou a rodar o mundo a partir de sua estréia no Festival de Veneza, em agosto de 2023, e chega agora ao Brasil, sua penúltima estreia comercial. A última janela do filme será na Rússia no começo de outubro.
Uma sacada inteligente do roteiro é evitar a espetacularização das aparições fantasmáticas. Não obstante ser algo sobrenatural, isso é aproveitado em viés dramático, sobremaneira sutil, no sentido de que Sidonie era muito apegada ao seu marido Antoine, havendo um detalhe crucial no processo que culminou em sua morte: da mesma maneira que aconteceu em sua infância, em que pai, mãe e um irmão falecem num acidente de carro e ela sobrevive, quando Antoine morre, Sidonie, que estava no mesmo veículo, desperta sem um único arranhão. O que leva-a a se declarar “cansada de sobreviver”. Em mais de uma oportunidade, ela alega sentir “uma tristeza sem fim” e, quando perguntada sobre a sua maior motivação para escrever, responde sem titubear, “escrever é o que resta quando não se tem mais nada”.
Dirigido com muita sobriedade, “Sidonie no Japão” revela-se bastante original em suas diversas mudanças de tom, culminando na referida homenagem resnaisiana, quando surgem os traços comuns a Kenzo e Sidonie: tal como ela, ele também sobreviveu a tragédias que afligiram pessoas queridas. Seu pai é um sobrevivente do bombardeio em Hiroshima, em 1945, por não estar na cidade naquele momento, e Kenzo salvou-se de um terremoto por ter se evadido justamente no dia em que ele eclodiu. Passeando com Sidonie pelas cidades de Osaka, Kyoto e Naoshima, Kenzo comporta-se de maneira lacônica em relação à sua interlocutora, mas eles desenvolvem uma intensa conexão passional, anunciada por sonhos em que ela imagina que está beijando o seu editor. A delicada trilha musical de Gérard Massini e a fotografia elaborada de Céline Bozon, que aproveita as belezas vastas dos cenários naturais japoneses, tornam este filme uma gratíssima surpresa, deveras apreciável tanto enquanto drama, comédia e romance – e/ou tudo ao mesmo tempo. Um filme muito, muito bom!
HOJE NOS CINEMAS
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