Terra de Ciganos, de Naji Sidki


 “Esta é a minha lenda. E não tenho nenhuma outra para contar, não”! 

Na abertura deste interessantíssimo documentário, um narrador traz a audiência a “Alegoria da Caverna”, de Platão [428-347 a.C], adaptada ao contexto cigano, na qual conta-se que as pessoas, numa época ancestral, viviam dentro de cavernas, em espaços mal iluminados. Depois que a curiosidade de um cigano faz com que ele saia e enxergue um mundo em que abundam as cores, o sol, as borboletas e as flores, ele volta para conclamar os seus companheiros a saírem de onde estavam e desbravarem um novo mundo. Apenas os ciganos aceitam esta convocação, e são agourados por quem obedecia a leis irracionais. “Por isso, os ciganos vagam, até hoje, de maneira nômade e adivinha”, conclui o narrador. 

Feita esta apresentação, conhecemos os talentos de alguns artistas ciganos, habitantes do Brasil, que se revezam entre o idioma português e a língua compartilhada por seu povo, considerando-se as variações dialetais manifestadas nalgumas regiões. O primeiro destes artistas é o grupo Vitsa Ramanush, cujos versos potentes servem como trilha musical para a peregrinação urbana de três mulheres que vivem no Acampamento Itaim Paulista, em São Paulo. Elas se esforçam para conseguir algum transeunte de quem possa ler as mãos e, assim, angariar algum pagamento. Mas está cada vez mais difícil, hoje em dia! 


Realizado em colaboração com a Embaixada Cigana no Brasil, representada por Ingrid e Nicolas Ramanush, este filme apresenta várias facetas da cultura cigana, com destaque para a sua conhecida musicalidade e para as roupas exuberantes. Ao longo dos noventa minutos de duração, alguns pequenos videoclipes são inseridos, em que às vezes os artistas estão gravando em estúdios, noutras vezes passeiam pelas regiões áridas em que habitam… 


Trailer


Ficha Técnica
Título original e ano: Terra de Ciganos Brasil, 2024Direção: Naji Sidki. Roteiro: Kátia Coelho e Naji Sidki. Pesquisa: Kátia Coelho e Naji Sidki. Personagens: Islaine Confessor/Gláubia Cristina/ as crianças Tareq/Laila e Medeiros/ As calins Tata, Sara e Mara/ Carlos e Floriano/ Léo e Rosana Lima (Circo Big Brother) Acampamento de Carneiros (Alagoas) Pedro Leopoldo (Minas Gerais). Gênero: Documentário. Nacionalidade: Brasil. Operador de Câmera: Naji Sidki. Operador de Drone: Emerson Pena e Roseane Romão. Correção de Cor: José Francisco Neto. Montagem: Daniel Souza. Som direto: Olivia Hernández Fernández. Desenho de Som: Tide Borges, Pedro Martins, Daniel Souza e Ariel Henrique. Diretor de Produção: Farid Tavares. Produtor Nordeste: Guilherme Cesar. Direção de Fotografia: Naji Sidki. Gerente Financeira: Vânia Brandão. Consultores Ciganos: Nicolas e Ingrid Ramanush. Músicos: Vitsa Ramanush: Nicolas Ramanush, Ingrid Ramanush, Buda Nascimento, Denis Rudah e Rogerio Loebel / Breno Cigano / Ronaldo Carlos / Batista Cigano e Erasmo Ferraz / Ferreirinha e Dodó / Fabiano e Bruno Cigano. Produção Executiva: Kátia Coelho. Produtora: Veríssimo Produções. Produtoras Associados: DotCine / Coelho Filmes e Mistral. Distribuidora: Pandora Filmes. Duração: 90'.
A despeito de ser uma produção documental, o diretor evita utilizar, de maneira predominante, o recurso convencional das entrevistas conferidas diretamente para a câmera. Opta por reconstituições paraficcionais, em que pessoas interagem, de maneira encenada, a fim de demostrar a efetividade dos costumes ciganos. Num dos casos, por exemplo, um fazendeiro tenta vender uma égua-mirim para dois ciganos e, ao final, aceita trocá-la por um peru, com alguns adendos devolutivos neste escambo. Noutro momento, o ônibus em que a banda supracitada viajava com sua trupe de cantores quebra no meio da estrada e eles pedem carona a alguém que passa de carro. Num determinado ponto, eles avistam a caravana circense de Léo Lima, proveniente de Petrolina, em Pernambuco, e, junto à esposa deste, Rosana, todos falam sobre a importância de conservar as tradições romani. 


Dois aspectos culturais são mostrados de maneira célere, que são justamente aqueles mais conhecidos pela população em geral: os casamentos e as rixas longevas. Uma cigana com voz grave anuncia um matrimônio triplo que acontecerá naquela região, entre primos, explicando o valor concedido à virgindade feminina nestes rituais; e, num relance, fala-se sobre quão duradouras e sangrentas são as rivalidades, quando surgem. 

Crédito de Imagens: Pandora Filmes / Divulgação / DotCine / Coelho Filmes e Mistral
O filme, que teve sua estreia na competição nacional do 16° Festival Internacional do Documentário Musical, In Edit, 


Ao diretor, entretanto, importa muito mais a musicalidade, de modo que ele aproveita ao máximo as histórias de vida do octogenário Ferreirinha, andarilho nordestino, instalado no Rio Grande do Norte: ele relembra como foi a sua alfabetização heterodoxa e, tanto quanto outros depoentes, reitera que o modo de os ciganos dedicarem-se à música ocorre de maneira muito livre. “Nem sequer utilizamos partituras, pois isto enfadaria os envolvidos”, explana outro cigano, ao defender o modo peculiar com que eles compõem e cantam. Na tela, ouvimos também variações sertanejas/caipiras em linguajar próprio, nas interpretações de Fabiano & Bruno Cigano, do Acampamento Itaquaquecetuba, em São Paulo, e o jovem Breno Cigano, em Porto Seguro, na Bahia, que passeia um tanto aturdido pelas ruas da cidade. Este último, aliás, enceta uma versão da famosa “(Ghost)Riders in the Sky: a Cowboy Legend” de Stanley Jones, que, na adaptação local, foi rebatizada como “Pendeile os Calons”, a cargo do compositor chibe Zanata Dantas. 

Para quem aprecia os filmes de Emir Kusturica e Tony Gatlif ou nutre fascínio pelas histórias de um “povo sem pátria”, que assume um viés anarquista e define a si mesmos como “uma ampulheta em que o tempo não escorre”, este filme é obrigatório. Há um poema declamado, em que a natureza é definida como “a roupa do mundo”, enquanto os ciganos são aclamados como “o perfume da terra”. Num segmento prolongado, acompanhamos a peregrinação de famílias pelo sertão alagoano, cujos pedidos de água, comida e abrigo são reiteradamente negados pelos “coronéis” locais, donos de terra mal-humorados que logo pegam espingardas, para assustar os ciganos, geralmente estigmatizados como ladrões. Ao invés disso, vemo-los preparando chás, cantando em quaisquer oportunidades. Em belíssimos enquadramentos gerais feitos via ‘drones’ ou gruas, a voz de Nicolas Ramanush cantarolando “Lachi Gili” surge imponente na banda sonora, permanecendo em nossa mente por muito tempo, após a sessão. Um trabalho magistralmente realizado: o diretor Naji Sidki está de parabéns! 

EM EXIBIÇÃO NOS CINEMAS

Escrito por Wesley Pereira de Castro

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