“Como é que alguém pode viver bem, dentro de uma bacia?!”
O filme mais conhecido da diretora, o premiado “A Primeira Morte de Joana” (2021), anunciava o seu estilo: um desenrolar lento de eventos, em que uma protagonista feminina rememorava situações de seu passado familiar, a fim de compreender as transformações que ocorrem em sua própria vida. É mais ou menos o que também acontece em “Até que a Música Pare” (2023), com a diferença de que, aqui, o protagonismo é compartilhado entre um casal idoso, que vive no interior do Rio Grande do Sul.
Predominante falado em talian – variante regional do italiano, transmitido pelos imigrantes que vivem na região Sul do Brasil –, este filme se inicia com vozes distantes, pouco audíveis. Chiara (Cibele Tedesco, excelente em cada inflexão sutil) está na cozinha, enquanto o filho Vancarlo (Jonas Piccoli), que morava consigo até recentemente, vende a sua motocicleta, pois está de mudança. Não sabemos ainda o que motivou esta decisão, mas logo percebemos que Vancarlo não se dá muito bem com o pai, Alfredo (Hugo Lorensatti).
Trailer
Ficha Técnica
Título Original e Ano: Até Que A Música Pare, de 2023. Roteiro e Direção: Cristiane Oliveira. Co-roteirista: Gustavo Galvão. Elenco: Cibele Tedesco, Hugo Lorensatti, Nicolas Vaporidis, Elisa Volpatto, Teti Tedesco, Tamara Zanotto, Jonas Piccoli, Cleri Pelizza, Magali Quadros, Valderez Formigheri, Edu Segabinazzi, Guilherme Rachel, Alexandre Lazzari, Luiza Helena Dias, Lucas Nunes. Gênero: Drama. Nacionalidade: Brasil. Direção de Fotografia: Julia Zakia. Direção de Arte e Figurino: Adriana Nascimento Borba. Técnicos de Som: Augusto Stern e Fernando Efrón. Montagem: Tula Anagnostopoulos. Produção: Aletéia Selonk, Emanuele Nespeca e Cristiane Oliveira. Produção Executiva: Graziella Ferst e Gina O'Donnell. Produção Associada: Gustavo Galvão e Nicolas Vaporidis. Direção de Produção: Pamella Moreira. Empresas Produtoras: Okna Produções, Solaria Films, Solaria Films, Locall. Distribuição: Pandora Filmes. Duração: 01h37min.
Descobrimos que Chiara e Alfredo possuem um filho falecido, Marco, que também brigara com o pai, que, antes, possuía um mercado e, atualmente, trabalha fazendo entregas. De comportamento reservado, Alfredo frustra-se ao perceber o avanço das investigações federais contra a corrupção de políticos bolsonaristas. E, então, quando ele declara não mais querer saber das notícias, o motivo das rixas faz sentido: a divergência teve origem na cisão política que dividiu o Brasil, durante e após as eleições de 2018.
Sem conversar adequadamente com a outra filha, Bea (Tamara Zanotto Padilha), pelo mesmo motivo, Alfredo esforça-se para atenuar a solidão de sua esposa, que fica em casa, enquanto ele sai para fazer as entregas. Ele tem a idéia de trazer-lhe uma tartaruguinha, a quem batizam de Filomena, mas, após a conversa com o noivo italiano (interpretado por Nicolas Vaporidis) de uma afilhada, que é budista, Chiara passa a acreditar que o quelônio é a reencarnação de Marco. E isso fará com que a relação entre ela e o marido seja atravessada por descobertas mui relevantes…
Créditos de Imagens: Pandora Filmes / Divulgação / Okna Produções, Solaria Films, Solaria Films, Locall
As filmagens da produção se deram entre agosto e setembro de 2022 na cidades de Antônio Prado, Veranópolis, Nova Roma do Sul e Nova Bassano no Estado do Rio Grande Do Sul.
A despeito de toda a alegação de probidade pessoal, na rapidez com que condena os “comunistas”, Alfredo comete diversas irregularidades fiscais, o que deixa Chiara atônita. E isso é constatado depois que ela insiste em acompanhá-lo nas viagens, quando a relação de cumplicidade matrimonial tornar-se-á ferida, tão logo se saiba das mentiras contadas por Alfredo, ao longo de tantos anos. Depois que ouve, num telejornal, que a esposa de um político corrupto foi presa, Chiara preocupa-se: “isso é justo?”. É Bea quem explicará à mãe mais alguns detalhes do conflito entre o pai e Marco, que trabalhava como professor universitário. Caberá à pequenina Filomena a responsabilidade de ouvir os desabafos arrependidos do casal. Será que ela é mesmo a reencarnação de Marco?
Ainda mais lento que seu filme anterior, “Até que a Música Pare” reitera a coerência da diretora na lida com questões específicas da região em que vive. A polarização político-partidária é um tema tangencial porém onipresente, balizando as decisões discursivas do roteiro, que se esforça para defender a conciliação entre o casal, a despeito daquilo que vem à tona, nas viagens. Nos instantes finais, em que a tradicional canção “La Colombina” irrompe na banda sonora, a cargo da ótima compositora Ginevra Verdi, o filme legitima as decisões de Chiara e Alfredo, justificando o título: quando a música toca, eles reafirmam o afeto que sentem um pelo outro, acatando a vontade de conversar, aceitando a necessidade de se reaproximar de quem, por alguma razão, partiu…
O filme talvez encontre dificuldades para alcançar o público, por causa de seu ritmo intencionalmente vagaroso e pelas especificidades rurais sulistas – vide o realce no modo de falar dos personagens –, mas é relevante tanto em suas proposições dramáticas quanto na reflexão acerca da hipocrisia recorrente nas posturas de quem adere ao moralismo fundamentalista. Quando tal condição provém de pessoas queridas, o enfrentamento é mais delicado, conforme ocorre na seqüência em que Alfredo teme que Chiara o denuncie para um policial que fôra amigo de Vancarlo: em vez da prisão, há uma troca de confidências juvenis, tão inusitada quanto a desenvoltura demonstrada por Chiara, ao pesquisar sobre budismo, depois que sua neta Nini (Teti Tedesco) a ensina como evitar as notícias falsas, na Internet. É um filme sussurrado, na maior parte de sua duração (uma hora e trinta sete minutos), mas também clemente, em sua crença legítima no entendimento interpessoal. Chega aos cinemas num momento oportuno, portanto.
EM EXIBIÇÃO NOS CINEMAS
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