Mambembe, de Fabio Meira | Festival do Rio

 
Após belos créditos em animação, são montadas imagens recentes e antigas (algumas parecem datar de período anterior ao início das filmagens, 2010) de diferentes formatos (vídeo, HD/4K) sobre o universo a se investigar: circos mambembes, algo que veremos ser diferentes dos circos como conhecemos. Similar a um Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo [Marcelo Gomes, Karim Aïnouz, 2009], mas com menor carga subjetiva e descolada da imagem - como falas em primeira pessoa sem mostrar o personagem, Rui, topógrafo, é quem nos guiará (com vozes em off) nesse documentário/road movie. Um dispositivo é colocado: 29 dias, 9 estados, 63 circos. De início, há uma contagem do período (1, 2, 3, pula para o 21), permitindo pensar que será assim o restante do filme, mas logo esse mesmo dispositivo se desfaz. Acrescido a isso, há reflexões sobre o processo de filmagem da película e o próprio filmar: esse bloco adquire consistência variada no decorrer do produção.

É possível dividir dois blocos no primeiro 1/4 do filme: no inicio, conhecemos as três personagens que acompanharão Rui na jornada: Madona (ou Madonna), Jéssica e Índia. O tratamento dado a cada uma varia, é mais resumido nas duas primeiras e mais extenso na última. Sobre essa, Índia, teremos o que vem a ser uma das grandes sequências do longa: num crescendo dramático às avessas (diminuendo é um termo ruim), encontramos Índia no seu dia a dia de trabalho, totalmente possessa e furiosa, ameaçando 'cortar a cara' de uma desafeta e até do próprio marido (?!). A posição da câmera, não frontal, quase imperceptível aos presentes (mas podendo ser algo que gera tal chama) capta o momento discretamente, o que dá força à cena. No próximo momento, Índia, ainda alterada, mas com um decibel a menos, exprime sua revolta com suas questões de trabalho, - o que revela a precariedade e a luta constante (no caso, apenas para se manter são) do meio mambembe. Finalizando, em formato entrevista, Índia já está em paz, conversa tranquilamente, quase que domada pela câmera: quanto mais frontal, maior a inibição? Essa personagem amena é que permanecerá o restante da película.

O segundo bloco, depois da cartela do título (aos 10-15 minutos), centraliza em Rui, fazendo as três personagens orbitarem em torno dele, num misto de curiosidade, atração e desprezo. É quando Mambembe decai por um longo tempo, 30 a 40 minutos, pois o caráter lacônico de Rui o torna opaco. Num momento, explica seus mapas, numa das poucas interações. Depois do filme se manter sem rumo, pois sem conflito principal, é explicado numa voz em off que Rui é similar ao pai do diretor, também calado, num atalho de roteiro que tenta justificar (há uma voz off similar ao fim do filme que dá sentido o tarô, que tem inserts variados no decorrer do filme sem justificativa). Porém, esse atalho didático não consegue salvar o tempo perdido a posteriori, amenizar o dano, e esse bloco não tem densidade dramática.

Eis que na segunda metade, uma cena que gera conflito reanima o filme, o trazendo de volta às relações do fazer cinema. Depois de 20 takes, o ator/Rui se revolta com o diretor. Na própria cena é possível ver que o drama é solto, que trabalha por tentativa e erro, sintoma do filme que tateia mas não encontra caminhos. Se o inesperado adquire força, sendo uma das suas maiores qualidades (a ponto de em muitos momentos não sabermos o que é roteirizado e o que é imprevisto), ele nem sempre causa disrupção, e se mostra uma aposta difícil, que rende poucos frutos. Quando embarca na ficção, mostra seus limites. E toda essa cena entra à fórceps na tessitura da produção.

                                                                     Crédito de Imagens: Roseira Filmes / Divulgação

Ficha Técnica
Título Original e Ano: Mambembe, 2024. Direção: Fabio Meira. Roteiro: Fabio Meira e Susana Barriga. Elenco: Índia Morena, Madona Show, Murilo Grossi, Dandara Ohana. Gênero: Documentário. Nacionalidade: Brasil. Fotografia: Daniela Cajías. Montagem/Editing: Affonso Uchôa, Fabio Meira, Juliano Castro. Empresa Produtora: Roseira Filmes. Produção: FABIO MEIRA, MAYA DA-RIN, PAULA PRIPAS. Duração: 97 min. Exibido no Festival do Rio.  

O fato de não haver apresentações é o menor dos problemas, conseguimos depreender que a situação da trupe é sempre difícil. Quando ocorre, é significativa: percebemos o quanto de incomum e sexual (de maneira apelativa) os números contém. Como se precisassem desse lado extremo para ter sucesso, revelando até o que acham que os pagantes gostam - há rebuliço da plateia nesses números. Entendemos que tal circo mambembe é como um submundo dentro da arte que se propõe.

O filme também cria situações para gerar faísca e dizer o que se quer sem precisar que o inesperado apareça, sob o risco de não aparecer. É assim a cena que Madona é agredida com ovos podres numa feira, para sublinhar um caráter transfóbico nesse mundo que, de outra maneira, não apareceria. 

Com esses diferentes procedimentos, o filme ganha por ser heterogêneo, mesmo que pouco coeso. Se o próprio tema impossível e sem horizonte se torna implícito "a gente vive mambembando" diz uma personagem, é mais por acidente que por intenção. Aparece mais como defeito, menos como questão central. Como Rui não fala, não desenvolve as relações, e a narrativa fica solta demais, pois não há ação no sentido de avançar a trama. Há um procedimento mais comum, que é repetir a mesma pergunta para diferentes entrevistados, assim, o documentário trafega entre o incomum e o muito conhecido.

Ainda assim, o planejado/roteirizado gera frutos quando é confrontado com o que é alcançado: no plano mais longo, vemos Madona esperar numa casa, quando a voz descreve a cena que não acontece, pois não é atendida. Em momentos como esse, é criada uma relação mais clara e fértil do que seria o filme possível e pensado contra o choque da realidade que nega um resultado planejado.

Num bloco final, passadas as filmagens, há um reencontro e exibição das filmagens antigas, num procedimento já comum, referência direta ao Cabra Marcado Para Morrer [Eduardo Coutinho, 1984], para além das semelhanças do tempo longo de produção. Há exemplos melhores de tal uso, como em Taego Awã [Marcela Borela, Henrique Borela, 2016], evidenciando que projetar para uma comunidade é diferente de mostrar para uma pessoa ou pessoas. Contudo, numa exibição dessas surge algo espontâneo, uma simples palavra de uma criança que cria comicidade na cena. Até onde se lembra, foi o momento onde deram risos mais largos na sessão.

                                                                     Crédito de Imagens: Roseira Filmes / Divulgação
Fábio Meira tem no currículos os incríveis ''As Duas Irenes'' (2017) e ''Tia Virginia'' (2023)

Ainda no fim, uma voz off tenta resumir o que se assistiu, dizer que houve "muitas surpresas", o que podemos discordar. E que o importante era caminhar, o caminho, como se registrá-los nas viagens fosse o bastante; infelizmente, só isso não faz um bom trabalho. Quando o filme investiga melhor as histórias, por depoimentos, este ganha densidade. Ao fim, as marcas do rosto de Madona dizem muito sem precisar serem explicadas. Então, se tira força de momentos e relatos isolados mais do que o conjunto. Rui, que tinha papel central, embora não conseguisse puxar a trama ao seu redor, é esquecido no ato final. Há uma tentativa de engrandecê-los sem terem conseguido nenhum feito, apenas por alimentarem seu amor pelo mambembe, apesar das dores. A questão do mambembe é retornada ao fim, mas no meio é mal tratado.

Se o que importa é o resultado e não o processo, há dados sobre Mambembe que parecem tentar fazê-lo maior, tanto o tempo da pré-produção (2008) até o fim, mais de 15 anos, como a trajetória, descrita no debate: Fábio Meira começou o trabalho na raça achando que conseguiria apoio depois disso, o que se mostrou uma ilusão, e Fábio reconhece sua inocência. Junte cinco anos para finalizar, numa segunda etapa com mais colaboradores, toda a história se torna épica. Se vale pela ousadia e persistência, assim como variedade de abordagens e procedimentos, peca pelo conteúdo final, desigual (Jéssica, das três, é muito pouco explorada), por vezes sem vida e caminhos a seguir. No mínimo, é uma lição do que se esperar ao se fazer um filme na garra. Se só o caminhar é louvável, ter ferramentas para lidar com essa jornada é essencial.

CRITICO CONVIDADO
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Escrito por Guilherme Cavalcanti

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