quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Marias, de Ludmila Curi


Em 2024, Maria segue sendo o prenome feminino mais comum no Brasil. Geralmente remete a uma mulher idosa, ou quem sabe uma santa. Usado de forma generalista para falar de uma qualquer. Usado pejorativamente para degradar mulheres: maria-vai-com-as-outras, maria-mijona, maria-gasolina. Um nome com várias facetas. Assim como a personagem histórica retratada em Marias, primeiro longa-metragem de Ludimila Curi.

Batizada como Altamira ao nascer, a protagonista assumiu o nome Maria na clandestinidade, quando fugia por perseguição política, ainda antes da ditadura militar. Quando passou a viver com aquele que conheceu na célula comunista e rapidamente virou seu companheiro de vida, ganhou o nome pelo qual é conhecida até hoje: Maria Prestes. Com Luiz Carlos Prestes, teve sete filhos, que se juntaram aos dois que ela já tinha.

Ser a sucessora de Olga Benário é uma tarefa difícil. Mas justamente por ser brasileira, “morena”, se chamar Maria e ter pouco letramento, passava quase despercebida por seus algozes e podia fazer seu trabalho político. Quando seu marido foi preso pelo regime militar, ela conseguiu convencer no papel de dona de casa que não entendia nada da vida política do esposo.

Crédito de Imagens: Descoloniza Filmes/ Divulgação / Plao 9 / Lumiá Filmes
Ludmila Curi é diretora, roteirista e tem no currículo trabalhos como assistente de direção em diversos curtas e longas

O filme se desenha em cima de uma protagonista invisível, apesar de conhecermos pela narração cada detalhe de sua vida. Fala-se de uma Maria que não aparece em tela. Vemos sua filha, seus amigos, a plateia das palestras que ela dá. Mas ela mesma não dá as caras. Somos informados sobre tudo o que ela disse, mas não ouvimos sua voz. Lá pelas tantas, a narradora confessa que a ausência da protagonista no filme se dá porque a personagem não autorizou o uso de sua imagem e áudio. Mas até então, já fomos levados a imaginar tudo: que a direção guardava suspense; que essa era uma forma de não dar rosto a um nome que pode se referir a um coletivo.

Por mais que essa recusa a aparecer no filme tenha pegado a equipe de produção de surpresa e deve ter causado um impacto de meses na ilha de edição, se arrisca a dizer que o filme está melhor assim. Não fosse por isso, correria o risco de se tornar um documentário com um assunto interessante, mas uma linguagem desinteressante. Um “talking heads”, como costuma ser chamado o tipo de filme que conta majoritariamente com entrevistados sentados falando de frente para a câmera. Da forma como está, Marias se tornou quase um road movie. A documentarista acompanha Maria pra cima e para baixo em palestras, eventos acadêmicos e populares, assentamentos do MST e casas de pessoas próximas pelo Brasil inteiro. Maria Prestes sempre atrás da câmera, escondida. Vemos as paisagens onde ela pisa. Vemos diversas imagens de arquivo que reconstroem os lugares em que esteve, os eventos que presenciou direta e indiretamente. Vemos até monumentos russos, próximos de onde ela viveu em exílio.

Crédito de Imagens: Descoloniza Filmes/ Divulgação / Plao 9 / Lumiá Filmes
 ''Marias'' participou do 7º Festival Porto Femme, em Portugal, em abril deste ano, e foi realizado a partir das leis de incentivo do Ministério da Cultura/LongaDoc e do Edital de Distribuição da Lei Paulo Gustavo/RJ, além de apoio do FSA/Ancine/BRDE e de outras instituições culturais.

Em dado momento do filme, nos deparamos com Marielle Franco em uma roda de pessoas com as quais Maria se encontrava. Neste ponto, perde-se um pouco o foco para falar do trabalho e da morte da vereadora. Outra personagem importante é Mariana Prestes, filha que conta os causos da mãe e da própria infância com um sorriso farto no rosto. Maria Elle, Maria Ana. São todas aprendizes da Maria em questão. Confidentes, cúmplices, seguidoras. Mas que não estão na sombra da Maria-matriz. São donas de seu próprio legado.

O longa termina deixando a indignação pela morte de Maria Prestes que foi vítima da covid-19 enquanto a obra era finalizada. Mas deixa também uma vontade de encontrar dentro de nós uma determinação forte como as que tiveram todas as Marias citadas para enfrentar os tempos sombrios que se desenham e que, como previu A Maria, iriam voltar.

Trailer


Ficha Técnica

Título Original e Ano: Marias, 2024. Direção e Roteiro: Ludmila Curi. Narração: Ludmila Curi, Edmilson Santini (Abertura), Bruno Moura (Repórter, Anos 1950). Gênero: Documentário. NacionalidadeBrasil. Direção de FotografiaLéo Bittencourt e Andrea Capella. Fotografia Adicional: Ludmila Curi. Som Direto: Antonio Carlos Jesus (Liliu) e Henrique Ligeiro. Montagem: Virginia Primo. Edição e Mixagem de Som: Bernardo Uzeda. Direção de Produção: Sabrina Bittencourt. Realização: Plano 9 (Marca) e Lumiá Filmes. Produção Executiva: Mannu Costa, Rayssa Costa, Henrique Spencer. Produção: Mannu Costa, Henrique Spencer, Ludmila Curi. Apoio Cultural: TV Cultura, Estúdio Pinho de Riga, Mídia Ninja, Cinemateca-MAM e Cinemateca Brasileira/SAC, Toni Venturi. Distribuição: Descoloniza Filmes. Duração: 78 min. 
17 de Outubro nos Cinemas

Um comentário:

Pseudokane3 disse...

Que texto lindo!!! De fato, deixou-me com muito mais vontade de conferir o filme. Parabéns e obrigado por isso!

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